12 ANOS DE ESCRAVIDÃO

24/05/2014 16:36

 

          Nota do Site: 5/ 5

 
 
     
   Atenção: contém alguns spoilers!

 
 

     O primeiro plano de 12 Anos de Escravidão é emblemático: um grupo de escravos esperando pela instrução de um capataz que, logo em seguida, surgirá em cena para lhes dizer como colher cana e, sobretudo, como se comportar perante seus “mestres”, uma cena que, além de expor a lógica perversa por trás da condição daqueles indivíduos, é apresentada acertadamente como algo corriqueiro e trivial, típico daquele período. Em seguida, um belíssimo movimento de câmera por dentro do canavial indo em direção ao protagonista (Northup) e depois em direção ao capataz que se encontra adiante, na carroça, expõe a lógica visual que irá predominar neste belo, impactante e visceral filme.

     Escrito por John Ridley a partir do livro homônimo do protagonista, o filme conta a história do violoncelista Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) que no ano de 1841 vivia livre com sua esposa e filhos em Nova York. Entretanto, certo dia, depois de aceitar se apresentar em Washington, acaba por ser sequestrado e vendido como escravo para William Ford (Benedict Cumberbatch), a fim de trabalhar na plantação de cana deste. Posteriormente, acaba sendo novamente vendido, indo parar dessa vez na propriedade do temível Edwin Epps (Michael Fassbender), para trabalhar em suas plantações de algodão. Lá, assim como precisou fazer na fazenda de Ford, Northup – que depois de feito escravo passará a se chamar Platt – precisará sobreviver àquela barbárie tendo que disfarçar sua condição de homem culto a fim de que não sofra represálias maiores por parte de seu “mestre”.

     Assim, centrando o foco da narrativa na jornada pessoal de Northup, o roteirista John Ridley e o diretor Steve McQueen aproveitam para mapear de forma absolutamente eficiente o processo de escravidão americana, sobretudo no período em que passa o filme. Assim, é absolutamente eficiente o fato do filme começar com Northup já escravo e aí retroceder no tempo para nos mostrar como o protagonista chegou até ali. Assim, do primeiro contato com os raptores passando pela “venda” de Northup (que será rebatizado de Platt por este nome “parecer mais adequado” à um escravo), McQueen mostra, sem concessões, como os escravos eram “preparados” para serem apresentados aos seus potenciais “compradores”, o que evidentemente já nos gera revolta só pelo fato de testemunharmos algo que para nós, “cidadãos civilizados” do século XXI, escapa à nossa perspectiva.

     Interessante também percebermos o cuidado de Ridley e McQueen em estabelecer as diferentes personalidades dos senhores escravistas, como, por exemplo, William Ford, que mesmo mostrando-se gentil e piedoso em relação aos seus escravos, não esconde, afinal de contas, seu status de escravista ao compactuar, subliminarmente, com a escravidão, sobretudo porque sem eles, homens senhores de terras como Ford simplesmente não existiriam. Assim, é fundamental a manutenção daquele status quo. Neste sentido, é perfeitamente plausível que, mesmo admirando e defendendo Northup, em certo ponto da trama, Ford não hesite em “vende-lo” a Epps, mesmo sabendo que este último não é tão “piedoso” quanto Ford.

   Outro aspecto relevante e que é posto brilhantemente por Ridley e McQueen, diz respeito ao uso do discurso religioso, feito sobretudo por Ford e Epps em momentos distintos, para subsidiar e justificar o uso da escravidão. Emblemático, por exemplo, ver os dois senhores “catequizando” seus “escravos” e utilizando-se de passagens específicas da bíblia para embasar aquele estado de coisas. Mas, se Ford salienta trechos que o colocam como o “bom senhor” (ou “Mestre”, como todos eles gostavam de ser chamados), Epps, por outro lado, incorpora o próprio discurso ao se colocar como uma espécie de “ungido” que, por causa disso, tem o “direito” de castigar seus escravos se este assim o julgar. Epps, neste sentido, diferencia-se de Ford apenas em termos de comportamento (já que Ford não via com bons olhos os castigos físicos), mas não de ideologia. Ponto positivo para McQueen, neste aspecto, não discutir essa ideologia, mas sim apenas nos mostrar, com suas poderosas imagens, como funciona essa lógica perversa e brutal, libertando-nos desta forma, para julgarmos como melhor nos convém. Penso, entretanto, que um racista/ preconceituoso dos tempos atuais procurará as mais elaboradas desculpas a fim de ignorar aquela brutalidade vista em tela, rendendo-se ao discurso típico do reacionário, que consiste em dizer: “ah, tá, a escravidão já passou e vocês ainda estão batendo nessa tecla”? Ou aquela que diz: “para mim não existe raça negra nem raça branca, existe raça humana”.

   Voltando ao texto. Esse comportamento dos “mestres” escravistas tem reflexo também (obviamente) em sua vida privada. Se Madame Ford esforça-se, num primeiro momento em parecer piedosa com uma escrava que acabara de se separar de sua filha dizendo “você em breve a esquecerá”, esta frase não esconde a mesma lógica ideológica perversa do marido e de todos aqueles brancos senhores de escravos, algo que fica muito claro na cena onde, enquanto Ford lê a bíblia para seus escravos, ao fundo temos Eliza, a escrava que se separou de sua filha, aos prantos, o que leva Madame Ford a comentar “quando isso vai parar? Não quero esta depressão pra minha casa...”! Ou seja, a piedade aparente não passa de um sutil desprezo revelado nesses poucos diálogos. E se Madame Ford ao menos esconde-se num véu de bondade, Madame Epps, por sua vez, não se esforça em esconder o desprezo que tem por aqueles indivíduos, sobretudo por Patsy (Lupita Nyong’o), fonte de adoração por parte do marido.

     E se as esposas dos senhores de escravos refletem a ideologia dos maridos, os subalternos destes, apenas por serem brancos, rogam-se no direito de humilhar os escravos, algo refletido na relação beligerante entre Northup e o capataz Tibeats (Paul Dano), levando aos escravos numa eterna postura de resignação que esconde a tentativa (ingênua, no final das contas) de sobreviver ao ódio irracional de seus “superiores”. Assim, é interessante que lá no início McQueen traga um escravo discursando sobre resistência apenas para na cena seguinte, vermos esse mesmo escravo se abraçando a um potencial comprador, apenas porque esse comprador, assim como Ford, aparenta ser mais “bondoso” que os demais. O fascinante nesta cena é que em nenhum momento antipatizamos com aquele personagem, pois sabemos que sua postura naquele contexto, é eminentemente lógica.

     Essa lógica, aliás, embasa toda a resignação servil de Northup, tendo o adicional que o personagem é claramente mais letrado e inteligente que a maioria dos personagens ali. Fascinante, por exemplo, os esforços dele em tentar ocultar esta inteligência ao ficar mensurando o tempo todo suas palavras, mostrando apenas o necessário para que sua posição na fazenda de Epps se torne menos difícil. Neste sentido, a interpretação de Chiwetel Ejiofor é minimalista por mostrar ao espectador essa eterna “corda bamba” que o seu personagem enfrenta. E nada mais ilustra essa condição do que o momento em que o personagem encontra-se com uma corda no pescoço, preso à uma árvore e tentando equilibrar-se no chão, um momento desesperador todo gravado num plano longo que parece demorar uma eternidade. Outro momento digno de nota é o exato instante em que ele diz a Epps, numa cena em particular: “você ainda será castigado por isso”. E se Northup opta pela resignação, sua expressão porém deflagra um desespero aterrador, como na cena em que ele testemunha a execução de dois escravos ou na fantástica cena onde precisa convencer Epps de que não escrevera uma carta. Nada mais reconfortante para esse protagonista, neste sentido, o choro decorrente da cena final, um momento raro de felicidade e alívio.

     Outros personagens de destaque do filme ficam por conta de Edwin Epps e Patsy. O primeiro é interpretado pelo fascinante Michael Fassbender com uma complexidade maravilhosa. Como já disse, Epps é um sujeito que exerce sua vilania ancorando-se no discurso religioso para justifica-la, incorporando-a sobretudo nos momentos de extrema violência que seu personagem protagoniza. Mais Fassbender se supera também nos momentos mais minimalistas, como o momento em que “interroga” Northup sobre o fato dele ter possivelmente escrito uma carta. Enquanto que o protagonista tenta se justificar com uma clara expressão de desespero na esperança que Epps acredite nele, Fassbender mantém uma expressão glacial que nos desespera por sua ambiguidade.

    Mais é mesmo a novata Lupita Nyong’o que merece todos os créditos e prêmios que recebeu por este filme. Sua personagem comove pelo sofrimento que passa. Além de ter que lidar com o assédio do patrão, precisa lidar com o ódio e os maus-tratos vindos da esposa. Sua entrega para o personagem, aliás, é de uma disciplina perturbadora. E basta a vermos, de relance, com os olhos vermelhos provenientes de algum machucado que recebera, para nos desesperarmos com a sua situação. Além disso, é dela o destaque em duas cenas seminais: a primeira o momento em que ela pede, desesperada, um favor à Northup e a outra, a forte cena onde, num plano longuíssimo, a vemos ser chicoteada a mando de Epps. E se toda a sequência nos choca e nos devasta, é o plano seguinte das costas literalmente rasgadas da personagem sendo limpa por outros escravos enquanto Patsy geme e baba de dor, que me comoveu profundamente. Uma cena que eu certamente levarei comigo para sempre.

     Pontuando estes difíceis momentos, temos a melancólica e maravilhosa trilha sonora de Hans Zimmer, que mostra-se eficiente justamente por salientar o drama e o desespero que aqueles personagens vivem. Mas em termos de música, nada é mais comovente do que a cena onde escravos, ao pé de uma cova, cantam a maravilhosa canção Roll Jordan Roll, um momento belíssimo e que só reforça o papel daquelas canções entoadas nas plantações de algodão e que foram, certamente, as origens históricas do blues, e que está tradicionalmente associado àquele contexto. 

     Há de se salientar, ainda, a belíssima fotografia de Sean Bobitt que ao compor quadros belíssimos tendo a paisagem ao fundo, contrapõem esse bucolismo à própria condição dos escravos, que em primeiro plano vivem seu drama absurdo e irracional. Assim essa lógica visual ajuda no reforço ao argumento proposto pelo roteiro de Ridley, sem desviar nossa atenção para o drama pessoal de Northup que, assim, insere-se num drama bem mais global. Esse contexto mais globalizante, diga-se de passagem, é reforçado, como já falei fartamente acima, na adoção de planos longos que se recusam a mascarar, com cortes secos, por exemplo, os maus-tratos sofridos, o que aumenta nossa imersão e envolvimento com a história.

     Assim, o que fica é um filme que, mesmo retratando um contexto histórico há muito ocorrido, mostra-se incrivelmente atual por nos revelar uma relação que ainda hoje ocorre, só que bem mais mascarado. Tinha falado anteriormente que a eleição deste filme como o melhor do ano pelo Oscar tinha muito mais haver com a necessidade da Academia de parecer politizada e sem preconceitos, mas o fato é que depois de ter assistido e sobrevivido a este filme, e me colocando no lugar dos senhores brancos votantes da Academia, fica muito difícil ignorar esse filme. Seria um desserviço à arte não ver 12 Anos de Escravidão no hall dos melhores filmes já produzidos. Parabéns à Steve McQueen e equipe por este belíssimo e já clássico filme!

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