DESEJO E REPARAÇÃO

24/05/2014 20:20

        

 

       Nota do Site: 5/ 5



     Obs.: este texto contém spoilers! Não leia caso ainda não tenha assistido!


     Briony Tallis é uma jovem superativa que em sua primeira cena está finalizando sua primeira peça teatral. Entusiasmada como qualquer pré-adolescente diante de algo do seu agrado, trata logo de mostrar, triunfante, para todos ao redor. Mas isso é apenas o ponto de partida dessa história; Desejo e Reparação é a história de como Briony, a partir de uma acusação precipitada e leviana, condenou o jovem Robbie Turner à prisão e ao infortúnio. Mas Desejo e Reparação é também um exercício narrativo complexo onde o “aparente” ganha novo significado na medida em que novas perspectivas vão sendo acrescidas à trama. Além disso, é um filme que exibe uma invejável metalinguagem cujo propósito é explicitar a própria arte de contar uma estória, bem como nosso envolvimento com a mesma.
 
     Dirigido por Joe Wright e adaptado por Christopher Hampton a partir do livro homônimo de Ian McEwan, o filme traz a jovem de 13 anos Briony Tallis (Saoirse Ronan) que, depois de presenciar da janela de seu quarto uma situação aparentemente erótica entre sua irmã Cecilia (Keira Knightley) e o criado Robbie Turner (James McAvoy), e depois uma série de mal-entendidos, acaba por acusar o jovem levando-o à prisão e culminando no rompimento e posterior afastamento de Cecilia da família. Anos depois já em plena Segunda Guerra, nos deparamos com esses três personagens em momentos e situações distintas: Robbie encontra-se na França lutando na guerra; Cecília leva a vida como enfermeira, esperando pelo dia em que reencontrará seu amor e Briony, já com 18 anos e percebendo as trágicas conseqüências de seu equívoco juvenil, inicia seu processo de “reparação” trabalhando como enfermeira enquanto espera pela oportunidade de acertar as coisas com Cecilia e Robbie. Já num terceiro momento, nos deparamos com Briony no fim da vida, dando uma reveladora entrevista que esclarecerá muitos pontos importantes desta interessante estória.

     Vivida por Saoirse Ronan na primeira parte da trama, Briony Tallis é puro entusiasmo, esbanjado uma vitalidade típica da idade e estabelecendo de imediato para o público sua personalidade controladora e sagaz. Além disso, Briony por julgar-se bem mais inteligente que o restante dos indivíduos da sua idade, sempre se mostra – ou tenta se mostrar – dominante em cada conversa que mantém, mesmo com adultos. Entretanto, é uma pena que a caracterização de Romola Garai para a personagem aos 18 anos seja tão básica, já que não traz nenhuma nuance que valha a pena ser mencionado, o que já não pode ser dito pela veterana Vanessa Redgrave, cujas pausas e gestos sutilmente explorados revelam um universo de sentimentos a uma personagem que chegou ao final da vida repleta de culpa e remorso. E isso é fundamental, já que é neste ponto da trama que o filme passa pela sua seminal revisão que nos fará revisar todo ou pelo menos parte do filme que acabamos de ver. E é digno de aplausos as boas interpretações de Knightley e McAvoy, especialmente este último, sobretudo por trazerem uma empatia fundamental para que nos importemos com o destino deles.

     Mais é mesmo Briony e seu ótimo arco dramático que realmente importa neste filme já que sua trajetória representa metaforicamente o espectador dentro da trama. É através dela que testemunhamos os infortúnios de Cecilia e Robbie. Mais do que uma personagem tentando reparar seus erros do passado, Briony representa a própria idéia do leitor/ espectador como receptor passivo, aquele que "suspendendo sua descrença" diante da história ficcionalizada, explora também e muito habilmente a necessidade que cada receptor tem de uma experiência catártica que, para ser bem-sucedida, deve vir acompanhada de uma epifania que, mesmo sabendo se tratar de um elemento falso dentro do universo ficcional, torna-se bem-sucedida porque a imagem ou a seqüência em si nos proporciona o reconforto que nós, receptores passivos, procuramos através do entretenimento. E aí quando nos damos conta, estamos sendo surpreendidos pelo nosso cinismo costumeiro ao percebermos que “aquilo” não passa de uma eficientíssima trapaça narrativa e metalingüística.

     E o leitor desavisado que nunca viu esse filme deve estar se perguntando: “Mas do que esse camarada está falando, afinal de contas?” E eu responderei: me refiro ao ato final, que traz justamente Briony como uma escritora famosa dando entrevista para seu último livro (Reparação). Uma cena que além de desconstruir toda a seqüência posterior, ainda nos apresenta a uma última cena que surge justamente depois de Briony revelar ter “inventado” muitas daquelas cenas emocionalmente reconfortantes.

     E assim, além de compreendermos que é a própria visão romanceada e “falseada” de Briony, compreendemos também o jogo metalingüístico de Ian McEwan ao conceber uma história que explicita a própria idéia do escritor como um sofisticado mentiroso, cuja eficácia só ocorre na medida em que aceitamos sua mentira a partir do grau de verossimilhança que a estória contém. Transpondo isso para o cinema, articula-se a idéia de verossimilhança com a necessidade catártica do espectador por happy ends e aí temos o cenário perfeito para a metalinguagem contida na última cena deste filme. De repente, depois de acompanharmos uma clássica história de amor por quase duas horas, somos informados que aquilo não aconteceu do modo que víramos, sendo instintivamente levados a reconstituir tudo aquilo e, o mais importante, repensar sobre o verdadeiro significado daquilo tudo, tirando-nos da condição de receptor passivo para receptor ativo da estória.

     Esta idéia do espectador como receptor ativo é um recurso aliás que nos permite sairmos de nossa condição de mero observador para a de espectador partícipe da trama. Neste filme em específico, o grau de participação exigido de nós está relacionado com a forma que reconstruímos a trama depois de revelada a trapaça metalingüística de Ian McEwan. Assim, é interessante pensar esse filme tomando a idéia do autor como um contador e manipulador de estórias fílmicas e literárias, bem como do leitor/ espectador como receptor de estórias que, mesmo sabendo serem frutos da imaginação de um indivíduo, aceitam esse jogo narrativo e conseqüentemente investem suas expectativas e emoções somente pela promessa de uma catarse ao final do entretenimento.

     Dessa forma, não é diferente a relação autor/ receptor com a do narrador/ ouvinte. Um indivíduo em volta de uma fogueira ouvindo estórias e lendas antigas que você sabe muito bem tratar-se de estórias romanceadas e factualmente manipuladas por alguém, não é muito diferente de um leitor ou espectador que se depara com uma estória ficcional criada para o entreter. Nos dois casos não é a veracidade dos elementos narrativos que conta, mas a idéia por trás das estórias, os elementos transcendentes que importam. No caso das narrativas orais é a experiência, o ensinamento moral. E no caso da literatura e do cinema é a catarse e a epifania.

     Desejo e Reparação proporciona tudo isso, mas antes escancara seus mecanismos narrativos e estampa em nossos rostos deslumbrados nossa condição de receptores conscientemente manipulados.

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