LARANJA MECÂNICA

24/05/2014 19:23

 

   Nota do Site: 5/ 5

 

     Quem não se lembra da primeira cena deste filme? Do rosto de Malcolm McDowell encarando o espectador enquanto um zoom out vai revelando quatro jovens num ambiente estranho e distópico? E da narração em off que o acompanha, sobretudo o linguajar incomum que adota?
    
     Este é o cartão de visitas de Laranja Mecânica filme produzido, adaptado e dirigido por Stanley Kubrick a partir da obra de Anthony Burgess, que em 1962 havia lançado o livro que contava a história do jovem Alex de Large, líder de uma gangue de adolescentes praticantes da ultraviolência – espancamento, estupro e assassinato – sendo este último o motivo de levar Alex à prisão onde, 14 meses depois e a fim de se livrar da pena, resolve se submeter a um tratamento experimental (a técnica Ludovico) que o deixaria incapaz de cometer atos violentos, podendo assim ser posto em liberdade. Só que é na volta pra casa que Alex viverá seu verdadeiro inferno, e aqueles que foram vítimas do ex-drugue terão a oportunidade de se vingar, invertendo-se, assim, os papéis.
 
     Inspirado por um caso real vivenciado pelo próprio Burgess (o estupro de sua ex-mulher por um bando de desconhecidos que invadiu sua casa certa noite), o livro logo chamou atenção de Stanley Kubrick que, vindo de outra obra-prima (2001- Uma Odisséia no Espaço), viu no livro um imenso potencial narrativo e imagético a ser explorado, o que para alguém na melhor fase da carreira era o ideal.
 
     Escrito a partir de uma linguagem inventada por Burgess, o Nadsat (mistura de russo, inglês e gírias britânicas, como o Cockney), o “livro” Laranja Mecânica por trazer uma dificuldade adicional na compreensão dos diálogos, levou Kubrick a apostar, na adaptação, na força sedutora e sugestiva das imagens e da estética kubrickiana, bem como no carisma de seu protagonista para dar ao espectador as ferramentas necessárias para a compreensão plena da narrativa.
     
     Vindo de uma única experiência no cinema naquele momento (If...), Malcolm McDowell encarnou tão bem o protagonista que até hoje é associado ao papel. Seu olhar sedutor, gestos “corteses”, postura autoconfiante e dissimulação calculada fizeram de Alex um dos melhores protagonistas já feitos na história do cinema. Mais do que estabelecer com perfeição o arco dramático de seu protagonista, McDowell “guia” o olhar e a conseqüente imersão do espectador para o filme, nos transformando em cúmplices de um indivíduo que a rigor deveríamos ter aversão. E é nesse ponto que a abordagem de Kubrick revela-se tão genial: enquanto somos atraídos para a trajetória de Alex, sobretudo por meio de sua retórica tão envolvente e de sua narração perfeitamente monocórdica, Stanley Kubrick vai construindo uma narrativa cuja diegese complexa transcende a mise em scène tradicional, concebendo quadros belíssimos e milimetricamente calculados.

     Compreendendo se tratar de um filme cuja premissa vem discutir a natureza humana a partir de dois instintos básicos – violência e sexo – Stanley Kubrick entende ainda que a narrativa trata-se de uma fábula moral sobre o livre-arbítrio do homem. Contudo, se em mãos menos habilidosas esse filme converter-se-ia num amontoado de chavões e “lugares-comuns”, o diretor opta por mostrar a violência de forma estilizada e simbólica, ao invés da violência visceral e gráfica.

     Assim, no instante em que Alex e seus drugues agridem um mendigo, por exemplo, podemos perceber que a agressão em si se dá num plano em contraluz cujas sombras ocultam as partes do corpo que estão sendo agredidas. Além disso, percebam como o uso soberbo da profundidade de campo neste momento serve para sugerir a presença ameaçadora dos drugues por meio de sombras “que se projetam sobre o mendigo” e vão se alongando pelo chão. Em seguida, ao enquadrar Alex e o mendigo em ângulos diametralmente opostos, ele salienta ainda mais o tom de ameaça e ainda nos coloca ao lado do protagonista, estabelecendo uma cumplicidade até o momento em que um salto no eixo inverte nosso “ponto de vista” e nos coloca do outro lado do cenário (o plano em contraluz ao qual me referia).

     Outros dois bons exemplos do preciosismo técnico de Kubrick estão presentes nas duas cenas passadas na casa de Mr. Alexander (Patrick Magee). Na primeira cena, Magee encontra-se em seu ambiente de trabalho, em plano médio e no centro do quadro. Ao toque da campainha, um sutil travelling lateral revela outro ambiente, a sala do escritor, onde está sua esposa (Adrienne Corri). Na segunda vez em que Alex vai à casa de Mr. Alexander, Kubrick repetirá o mesmíssimo enquadramento, plano e travelling usado da primeira vez, num tipo de virtuosismo que denota a complexidade de sua criação diegética.

     Além do mais esse tipo de abordagem visual sugere neste caso em específico, uma idéia de trivialidade onde o absurdo da violência surge sem mais nem menos, estabelecendo o caos e a brutalidade. Curiosamente (ou ironicamente), enquanto a seqüência do estupro se notoriza pelo fato de Singing in the rain dar um suporte perverso ao ato (com o intuito óbvio de compartilharmos do sadismo do protagonista), o segundo momento nos traz uma idéia de violência bem mais elaborada e complexa, em comparação com a ação deliberada dos drugues: não é somente pura e simplesmente vingança que Mr. Alexander deseja; ele sabe que é insuportável para Alex ouvir a 9ª Sinfonia a ponto dele querer “anular-se”. Assim, pôr o protagonista num quarto cerrado para ouvir essa musica corresponde sim a um simbólico ato de estupro por parte de Mr. Alexander, que se regozija intensamente com o ato.

     E aqui, ao colocar as vítimas de Alex na posição de algozes, ele informa nas entrelinhas que a violência pode ser tanto um ato de caráter quanto de desforra, sobretudo quando causado num contexto onde inexiste ou é falho a presença/ controle do Estado. Neste sentido, os drugues deste filme nos mostram que indivíduos inseridos neste contexto tenderão a uma postura conspiratória voltada para a promoção do distúrbio e do caos, sem ideologia, apenas horrorshow, tão somente.

     É significativo também que para além dessa especulação mais aprofundada sobre o uso da violência, e mesmo numa leitura mais superficial e óbvia, o diretor está mesmo é querendo nos dizer sobre a natureza humana não a partir de elucubrações intimistas mais sim a partir daquilo que ele tem de mais primitivo: os instintos. Aliás, se pararmos pra pensar no fato de que em Laranja Mecânica pouco ou nenhum destaque se dá à figura da mulher, em termos narrativos, podemos concluir que esse filme é sobre a natureza do homem e como ele lida com seus instintos e, lógico, suas escolhas (racionais ou passionais). Não se trata, entretanto, de uma visão machista do mundo, pois se nossa atenção está em Alex, nosso olhar está atrelado ao modo como o sujeito vê, sente e age em sociedade. Deste modo, é perfeitamente natural que nesta perspectiva a mulher tenha importância apenas pontual, constituindo-se para ele apenas em instrumento de satisfação sexual, na maioria das vezes.

     Desta forma, esclarecido esse ponto, lembremos também que a trilha sonora do filme tem imenso destaque na narrativa, tendo a função primordial de construir o clima necessário para nossa imersão no filme. Quando, por exemplo, o Main Theme de Wendy Carlos surge nos créditos iniciais acompanhado em seguida pela soberba narração de McDowell, imediatamente estabelece-se um clima sombrio e difuso, que nos absorve completamente e nos joga para dentro do filme nos fazendo compreender de imediato que aquele universo – o universo de Alex de Large – é imprevisível, instável, excitante e sedutor. Além disso, assim como o restante da narrativa que se desenvolve a partir do ponto de vista de Alex, a trilha sonora também se apresenta subjetiva, uma vez que todos os temas tocados neste filme correspondem ao gosto musical do protagonista, cujo apuro estético mostra-se acima da média.

     Neste sentido, Alex é um sujeito perfeitamente capaz de se encantar ouvindo Beethoven a ponto de se ofender ferozmente com qualquer um que zombe do mestre. Assim, a música é para ele o escapismo perfeito para esquecer, mesmo por alguns instantes, seus instintos virulentos, algo que fica claro na cena onde ele ouve a 9ª Sinfonia pela 1ª vez. Enquanto põe a fita para tocar, o olhar fixo no imenso pôster de Beethoven denota seu êxtase ao ouvir as primeiras notas da imortal música. A imagem do ídolo parece encará-lo, agigantando-se; a pequena estátua dos “Quatros Jesus” “dança” conforme a melodia e com o auxílio de uma montagem precisa, que une frames específicos de partes da estátua (braços, pernas, rostos) num ritmo frenético preciso e complexo.

     Para além de mera ferramenta narrativa, fica claro que a música também exerce função simbólica, pois, se o filme é no fundo uma fabula moral sobre o livre-arbítrio e escolher entre o bem e o mal faz parte deste processo, está claro que a música para Alex é muito mais que uma questão de gosto. É o indicio de sua humanidade, embaixo de um entulho de agressividade e cinismo. Assim, quando Alex se maravilha ao ouvir a 9ª Sinfonia ele imediatamente nos deixa escapar uma “ponta” de sensibilidade que o tornam psicologicamente complexo ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, reforçam sua imprevisibilidade, pois, se o sujeito é capaz de sentir a mais profunda das epifanias, porque ele sente tanto prazer em produzir brutalidade? E o que é mais fascinante, no final das contas, é que ao tirar-lhe esse único elemento que o tornava humano e usá-lo como elemento punitivo, o Estado (ou seja, a técnica Ludovico) mais do que negar-lhe o livre-arbítrio, tira-lhe também sua sensibilidade. E se antes a mais bela das melodias o levava às mais profundas epifanias, agora o leva ao mais alto grau de desespero.

     Estabelecida a agressividade imprevisível e a sensibilidade para a música, há uma terceira característica que molda a personalidade de Alex (na verdade, de todos nós, mas divago): sua sexualidade. Aliás, a técnica ao qual foi submetido tinha por pressuposto a supressão dessas três características, sendo que o sexo era-lhe elemento complementar na execução de atos violentos, uma vez que o sujeito não faz o tipo sedutor, mais predador. A idéia de “prazer sexual” estava intimamente ligada à posse, portanto ao estupro e ao sadismo. Além disso, Laranja Mecânica é um filme que está constantemente mostrando ou sugerindo elementos eróticos por toda a narrativa. No caso deste filme, a representação visual do erotismo está intimamente ligada à visão de mundo do próprio protagonista, cuja libido junto à agressividade gratuita, molda seu caráter profundamente multidimensional.

     Espalhado por vários momentos no decorrer do filme, esta representação visual do erótico vai desde objetos de cena com temas fálicos (o pênis de cerâmica, as máscaras pontiagudas, os dois sorvetes em formatos fálicos), decoração de sets (a estátua no bar, que jorra “leite alucinógeno” das tetas, o quadro no quarto de Alex e os da sala de “Catwoman”, todos com imagens eróticas), passando pelo uso simbólico dos objetos fálicos em cena, como por exemplo, as máscaras fálicas usadas pelos drugues no ataque ao casal Alexander, mais precisamente no exato instante em que Alex se abaixa em direção à Mr. Alexander (no chão, amordaçado) e a ponta da máscara de Alex “vaza” pelo canto superior do quadro, simbolizando visualmente a “invasão” de Alex em relação ao “espaço” do escritor (seu lar, esposa). Assim, quando Alex diz “Videie bem, irmãozinho. Videie bem” olhando em nossa direção com a máscara fálica apontando pra nós, ele está sutilmente quebrando a quarta parede e nos colocando na posição da vítima, subvertendo nosso vouyeurismo e manipulando nossa percepção.

     E se do ponto de vista estético temos o melhor deste fascinante diretor, do ponto de vista narrativa temos a história perfeita para ser contada através de sua ótica pessimista e racional. Se a primeira parte do filme é dominada pela subliminar discussão sobre natureza do homem e seu livre-arbítrio, a segunda metade foca no Estado através do simbólico uso da técnica Ludovico em Alex e suas conseqüências. Na verdade, Laranja Mecânica é o típico filme que traz à tona a discussão sobre o conflito entre o indivíduo versus a sociedade, no que tange ao exercício pleno da individualidade através de nossas escolhas morais (mesmo repreensíveis, no caso do protagonista), em contraponto à idéia de cerceamento desta individualidade por parte do Estado, visando o controle social da criminalidade que, no filme, alcança índices insustentáveis e prejudica o exercício pleno do “bem-estar social”.

     Esse Estado distópico burgessiano e kubrickiano não é mais capaz de prover o “bem-estar social” justamente pelo fato de não mais conseguir estabelecer, no plano macro, a “lei e a ordem” (como diz lá no começo o mendigo agredido por Alex) e também, se julgarmos pela forma decadente, suja e abandonada com que o pátio do condomínio de Alex bem como a recepção do prédio onde ele mora são visualmente retratados, intuiremos que o abandono do Estado não se dá apenas no âmbito da segurança, mas da economia e até da política. Mais ao centrar foco nos drugues e nos distúrbios que eles cometem, Burgess e Kubrick forçam análise justamente na idéia de que numa sociedade onde o Estado e seus aparelhos institucionais não se fazem presentes, pequenos grupos organizados tomam conta, provocando anarquia e rebeldia.

     Os drugues do filme, neste sentido, podem muito bem se encaixar nesta afirmação justamente por se comportarem como tais. E mesmo quando são pegos (caso de Alex), ou são usados como massa de propaganda política ou são reinseridos como agentes da lei (Dim e George Boy). A técnica Ludovico, sendo um exemplo perfeito de “condicionamento Behaviorista”, tem a dupla função de ser uma resposta ao estado de convulsão social que aquela sociedade se encontra devido aos altos índices de violência, bem como de reorganizar o Estado por meio de um forte elemento propagandístico que cooptasse a opinião pública em torno de si.

     Por isso é tão importante a cena final onde o Ministro britânico “costura” um acordo com Alex, evitando denuncias por parte deste. Ele está ali garantindo, no âmbito institucional, que o Estado não sofra retaliações. Pode parecer cinismo, mais faz toda a diferença dentro da lógica do filme. É o Estado tentando reordenar-se, mesmo que por bases repreensíveis (e aí voltamos a questão da escolha moral e do livre-arbítrio, só que num plano “macro”). Quanto a Alex, ao aceitar ser “garoto-propaganda” do mesmo governo que quase o matou (literalmente), está deixando claro para o espectador pouco se importar com a coletividade, optando por isso retomar sua individualidade, mesmo que por meios também repreensíveis.

     Aliás, falando em final, diferente de Burgess que optou pelo otimismo, Kubrick, por ter adaptado o filme a partir de uma edição diferente da original, encerrou sua obra com um tom mais cínico e ambíguo. Burgess costumava dizer que Alex não tinha no filme o necessário aprendizado típico das fábulas morais. Da minha parte, penso que o final do filme Laranja Mecânica acerta em cheio no cinismo e coroa com brilhantismo uma história que, mesmo nos encantando com seu estilo e técnica, não passa de uma narrativa cujo pessimismo das entrelinhas é o principal ensinamento a ser passado para nós. E a julgar por sua longevidade e seu legado, creio que foi Kubrick, no final das contas, que saiu ganhando na visão distópica criada em torno da história de Alexander de Large.

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