OS BRUTOS TAMBÉM AMAM

07/07/2014 23:45

 

Cotação: 5/ 5

 

George Stevens é um dos maiores cineastas da história do cinema. Dono de um estilo irretocável e reconhecível, o diretor invariavelmente utilizava-se de narrativas simples a fim de desenvolver temas universais e de caráter abrangente, auxiliado ainda por personagens complexos e fascinantes, sendo um desses personagens o inesquecível Shane, interpretado pelo ótimo Alan Ladd no filme homônimo dirigido por Stevens e que aqui no Brasil ganhou a horrorosa e simplista tradução Os Brutos Também Amam, optando, neste sentido, em focar na subliminar relação de Shane com Marian (Jean Arthur), quando na verdade o filme tinha muito mais do que isso para oferecer.

Abrindo seu filme num plano magnífico onde o protagonista surge de costas enquanto desce uma montanha (e que, obviamente mostra ao fundo uma belíssima paisagem) só para em seguida o vermos diminuto enquanto o mesmo atravessa um vale, o filme conta a história do desconhecido Shane que, ao ser recebido pelo rancheiro Joe Starrett (Van Heflin), aceita trabalhar para o rancheiro, ao mesmo tempo em que fica sabendo do iminente conflito entre Starrett e do fazendeiro Riker (Emile Meyer), que vem há tempos aterrorizando os colonos da região (incluindo Starrett) a fim de que estes saiam de suas terras para o fazendeiro ocupar. Assim, optando por adotar uma postura observadora diante deste conflito, Shane é também o típico “herói sem passado” que tantos faroestes abordaram, mas que nas mãos de George Stevens ganha uma profundidade psicológica fabulosa que vai revelando aos poucos o caráter de seu protagonista, na medida em que a narrativa avança.

Além disso, George Stevens e o roteirista A. B. Guthrie Jr acertam em cheio em dar destaque maior de cena ao personagem Joe Starrett e a todo o seu conflito com Riker, legando à Shane um papel secundário, dando-lhe uma ambigüidade que só se esfacela na medida em que ele passa a se envolver cada vez mais no cotidiano e nos problemas de Starrett (como na cena em que Shane briga no bar com Riker e seus capangas).

Outro ponto de destaque do filme – e que já foi adiantado aqui – diz respeito à relação entre Shane e Marian. Encarando o “forasteiro” com curiosidade natural, a personagem claramente nutre “algo mais” por ele. E é exatamente esse “algo mais” que se beneficia por sempre ser mostrado subliminarmente, pois nas mãos de um diretor menos talentoso seria facilmente escancarado numa relação extra-conjugal que nada acrescentaria à trama , além de simplismo e moralidade machista. Assim, o sentimento de Marian em relação à Shane se mostra como uma mera curiosidade e se desenvolve para uma simpatia que não passa disso, pois o interesse primordial da personagem é mesmo a preocupação com a família, sobretudo o temor que ela sente quanto à integridade física do marido e a preocupação com o apego do filho com Shane pois, segundo ela, “um dia ele partirá”, estabelecendo-se, assim, numa das personagens mais pragmáticas e sensatas do filme.

E se Stevens não cai na tentação de criar uma Marian simplista e rasa, a mesma coisa acontece com Starrett, que poderia ser facilmente concebido como um sujeito acovardado ou mesmo reticente, pois salientaria a necessidade da ajuda de Shane e até mesmo explicaria o envolvimento de Marian com o forasteiro, caso o filme abraçasse esse subtema. Ao invés disso, Starrett é concebido como um sujeito de coragem cujos propósitos, contrários ao do fazendeiro Riker, fazem todo o sentido, pois, para Stevens – bem como todo qualquer diretor daquele período – Starrett representa metaforicamente a força dos rancheiros na colonização do Oeste americano que, mesmo lutando contra terríveis adversidades (como os grandes proprietários de terras e sua força armada, por exemplo), conseguiram se estabelecer e prosperar mesmo naquelas condições. Desta forma, Os Brutos Também Amam é sim um filme ideológico acerca da história americana, adaptada aqui para um conflito mínimo e conduzida por personagens complexos e fascinantes.

E se o filme funciona como narrativa e como metáfora histórica, é graças também à sua estética que essa eficácia é reforçada: vejamos, por exemplo, a primeira seqüência que, como já foi dito, mostra o protagonista de costas e depois diminuto enquanto atravessa uma planície até a casa dos Starrett que, de forma fabulosa, faz uma rima temática belíssima com o último plano, quando vemos o protagonista fazer o caminho inverso. Além disso, a cena onde Shane e Starrett brigam num bar com os capangas de Riker destaca-se por ser encenada num plano mais longo e sem a necessidade de tiroteios (a rigor, só teremos tiroteio na seqüência final do filme). E o que falar da cena no cemitério onde um travelling desvia-se do enterro para revelar, ao fundo, a cidade que, mesmo diminuta, representa o perigo por conter Riker e seus amigos. E por último, a briga entre dois personagens, já próximo do final, notabiliza-se por mostrar inicialmente o conflito a partir de um ponto de vista inusitado, de dentro da casa, optando por centrar o foco em dois outros personagens que estão acompanhando a briga.

Eu poderia, afinal de contas, listar uma série de outros exemplos da plasticidade deste fabuloso filme, além de salientar o grau de tensão que Stevens magistralmente vai conduzindo no decorrer do filme. Resta dizer que este filme é portanto, um belíssimo representante do western americano e sobretudo da filmografia deste fantástico diretor, dono de tantas outras obras-primas do cinema.   

 

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