VELUDO AZUL

25/05/2014 16:58

 

Nota do Site: 5/ 5


     A primeira cena de Veludo Azul é emblemática quanto à narrativa que quer contar. Abrindo o filme com um imenso tecido de veludo azul tomando a tela enquanto passam os créditos iniciais, a câmera vai se aproximando aos poucos até o momento em que uma sutil elipse revela um imenso céu azul, com flores coloridas em primeiro plano, penduradas em cercas de típicas casas suburbanas americanas, sugerindo um bucolismo e uma normalidade que é posto em xeque no momento em que um sujeito passa mal enquanto rega seu jardim. Nesse instante, a câmera de Frederick Elmes mergulha no gramado e nos revela que abaixo de todo aquele verde, besouros em plano-detalhe cavam ferozmente a terra, numa sugestão eficaz de que, por baixo de toda aquela normalidade reside o caos e o perigo, prestes a vir à tona.

     Escrito e dirigido por David Lynch, o filme conta a história de Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan) que depois de encontrar uma orelha num terreno baldio decide, com a ajuda da amiga Sandy Williams (Laura Dern), investigar por conta própria o caso que parece estar relacionada de alguma forma à cantora Dorothy Vallens (Isabella Rossellini). Envolvendo-se inesperadamente com Dorothy, Jeffrey descobre que a moça encontra-se dominada e vigiada por um sujeito sádico chamado Frank Booth (Dennis Hopper), que mantém presos o esposo e o filho. Decidido a ajudá-la mesmo sabendo quão perigoso isto é, Jeffrey passa a fazer parte de um cotidiano de sadismo e suspense enquanto tenta esclarecer aquele caso.

     Conhecido por uma filmografia cujos temas sempre variam do bizarro ao suspense, David Lynch concebe aqui um eficiente thriller policial e psicológico, adotando, com a ajuda do diretor de fotografia Frederick Elmes, uma fotografia mergulhada em sombras e penumbras, ao estilo noir e que, ao se utilizar predominantemente do vermelho nos cenários e figurinos sugere um constante perigo em volta de todos aqueles indivíduos. Um perigo, aliás, que surge da penumbra que cerca o protagonista nos momentos de maior tensão. Em contrapartida, contrapõem-se eficazmente ao vermelho predominante os tons azuis relacionados exclusivamente à Dorothy Vallens, destacando-a visualmente de todos os outros personagens.

     Essa estratégia visual, diga-se de passagem, relaciona-se de forma curiosa à música-tema Blue Velvet, que destaca “aquela que vestia veludo azul” de todas as demais. Assim, a trilha econômica de Ângelo Badalamenti tem por função apenas acentuar o suspense nos momentos que o roteiro assim exigir, sendo eficiente particularmente nos momentos em que Lynch e Elmes enquadram uma cortina vermelha no apartamento de Dorothy, nos alertando do perigo que ronda lá fora. Outra estratégia eficiente do roteiro de Lynch reside na informação de que Lumberton seja uma cidade cuja principal atividade econômica seja a extração de madeira, utilizando-se dessa informação como metáfora para sugerir o universo de violência que aquela cidade vive, mesmo disfarçadamente. Além disso, o pintarroxo que, inserido no filme para simbolizar a “paz depois da anormalidade” e surge na janela dos Beaumont mastigando um inseto, pode ter o mesmo sentido sutil de violência para o filme.

     E se Lynch estabelece seu visual de forma a construir tão cuidadosamente o clima de perigo e suspense, é porque aquilo que realmente importa (o “mistério da orelha) mostra-se como a principal anormalidade daquele lugar. E esta anormalidade surge inicialmente com Dorothy, interessando à Lynch brincar com a nossa percepção acerca do perigo que enfrenta(rá) Jeffrey, utilizando-se desse momento para introduzir uma carga de erotismo que se desenvolverá, ao longo do filme, num sadomasoquismo doentio e perturbador. E é aqui que Lynch costuma ser mestre, quando brinca entre o erotismo e o bizarro, pois, se a sugestão de sexo oral entre Dorothy e Jeffrey mostra-se eficientemente excitante, essa percepção muda radicalmente com a entrada de Frank em cena e seu sadismo, causando repulsa no espectador. Aliás, duplamente repulsivo: Frank e seu fetiche, e Dorothy e sua expressão de satisfação com o ato de Frank.

     Falando em Frank, é digna de nota a atuação de Dennis Hopper que certamente é a melhor coisa do filme. Vivendo um sujeito violento e intempestivo, Frank é um cara que se guia por instintos, exibindo um sadismo particular que não enxerga em seus atos uma clara anormalidade. Nesse sentido, Hopper é eficiente justamente por criar uma composição que nunca cai na caricatura. Kyle MacLachlan, por sua vez, é eficiente ao mostrar ao espectador a real motivação de seu personagem, a curiosidade. E quando este se envolve com Dorothy, não é difícil acreditarmos que ele realmente se importa com ela, embora saibamos que o masoquismo de Dorothy dificilmente o atrairá. E quanto a Isabella Rossellini, perturbada pelo fato do filho e marido estarem nas mãos de Frank, e sujeita aos fetiches deste, a moça encontra em Jeffrey uma “válvula de escape” eficaz para aliviar seu drama. Neste sentido, não é difícil entendermos o porquê de ela insistir em chamá-lo pelo nome do esposo, já que Jeffrey certamente representa uma paz que a cantora deveria ter somente com seu marido e filho.

     Eficiente também na representação gráfica da violência, Veludo Azul foi o filme que estabeleceu David Lynch como um dos mais criativos diretores de Hollywood, vindo a se tornar com o passar dos anos numa espécie de “selo”, no que concerne a filmes que flertem com o bizarro e o estranho (vide Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos). É uma pena que este diretor tão singular esteja a um bom tempo afastado das telas, pois já está na hora de termos sua criatividade de volta, a mercê de nossa satisfação cinéfila!

Voltar

Contato

Baú de Resenhas

© 2014 Todos os direitos reservados.

Crie um site gratuitoWebnode