ABUTRES

24/05/2014 21:27

 

Nota do Site: 5/ 5


     Sosa (Ricardo Darín) é um advogado que vive rondando vítimas de acidentes de transito à procura de clientes em potenciais para, com isso, processar seguradoras e, conseqüentemente, lucrar com o golpe. Luján (Martina Gusmàn) é uma médica residente que, para garantir seu emprego, trabalha como paramédica nas horas vagas. Num desses dias turbulentos os dois se conhecem e, à medida que vão convivendo, apaixonam-se. Por causa dessa paixão, passam a questionar seus próprios estilos de vida, tentando mudá-los definitivamente. Contudo, como informa a sinopse do filme, “o passado turbulento parece ser forte demais” e sair dessa rotina será altamente perigoso.

       Essa é a premissa básica de Abutres, do diretor Pablo Trapero (do sensível Leonera). Trazendo no elenco Ricardo Darín e Martina Gusmàn como protagonistas absolutos do projeto, o filme ganha intensidade cada vez que estes estão em cena, dadas à entrega total de seus intérpretes aos personagens, sendo beneficiados por uma história que, sem apelar para escapismos ou um convencional happy end hollywoodiano, convence justamente pela verossimilhança da narrativa, fazendo nos importarmos pelos dramas dos protagonistas à medida que a narrativa avança. Martina Gusmàn, como Luján, compõe uma personagem que, mesmo dedicada à profissão que exerce, parece estar sempre exausta, apresentando um semblante sonolento pelas horas sem dormir. E se a personagem luta por manter-se ativa, entre uma bronca e outra de seu chefe devido a suas ocasionais negligências por causa do cansaço, é no vício por anestesia e nos encontros com Sosa que a jovem encontra o escapismo para sua solidão.

     Quanto a Sosa, interpretado por um Darín sempre capaz de apresentar nuances que o diferem de todos os outros personagens que já compôs, o talentoso ator nos apresenta a um personagem que gradualmente vai mostrando todas as suas facetas. Se o vemos, num primeiro momento, prestativo e solidário, passamos a compreender logo em seguida suas reais atribuições, e ser ‘bom’, definitivamente, faz parte do pacote. Contudo, a credibilidade que o ator passa é tamanha que jamais deixamos de acreditar nele, pois, mesmo sabendo que em alguns casos suas ações, por mais imorais que possam parecer, são necessárias já que o mesmo está submetido a um sistema corrupto que, mesmo conseguindo ricas indenizações às vitimas que representa, são esses mesmos clientes que saem perdendo, pois sequer vêem metade do dinheiro que, por direito, ganhariam. E quando Sosa resolve sair dessa situação para dedicar-se à Luján, compreende de cara que simplesmente sair não é o bastante, pois, é preciso romper. E romper, neste caso, implica em perigo e incerteza. E mesmo compondo um personagem capaz de rompantes emocionais, Sosa é, sobretudo, um ser racional que sempre avalia as ações que tem de fazer.

     E mesmo que não compreendamos certas passagens no momento em que estas acontecem, somos pegos de surpresa logo em seguida pelo roteiro nada óbvio, mas nem um pouco hermético, de Trapero, como na cena em que Sosa, ao fazer um ato moralmente deplorável, exaspera-se, logo em seguida, ao perceber as conseqüências de seus atos. E nós, espectadores, só ficamos sabendo de que ato é esse quando ele acontece, de fato, compartilhando com o protagonista, do mesmo choque. Esse tipo de choque, aliás, irá nos acompanhar pelo resto do filme, pois, como um filme centrado em acidentes de trânsito, golpistas e à noite na maior parte do tempo, a tensão está presente em todo o longa metragem, já que a mise-en-scène de Trapero estabelece seus personagens em locações sujas cuja insalubridade converte-se na metáfora perfeita para aquela situação delicada, além da escuridão dos ambientes, que reflete a incerteza dos destinos dos personagens. E não é à toa que os personagens principais, quando estão juntos em cena, aparecem, na maioria das vezes, espremidos no mesmo quadro, compartilhando uma afetividade sugerida pela fotografia, como se tentassem destacar-se daquele cenário absurdo e aparentemente intransponível.

     E já que falamos dos aspectos técnicos de Abutres, é justo salientarmos aqui o rigor metodológico de Trapero, cuja técnica prima pela formalidade dos enquadramentos, ao mesmo tempo em que usa "planos" mais longos ou mesmo "planos-seqüências" como estratégias que o ajudem a contar suas histórias. E se isso já era eficaz em seus projetos anteriores, é neste filme que observamos um refinamento da técnica, sem pedantismos ou auto-congratulação gratuita. Neste sentido, observa-se, em Abutres a adoção de planos gerais como forma de se destacar o cenário para, logo em seguida, aproximar a câmera para junto dos personagens que estão compartilhando a cena, trazendo-os ao primeiro plano e salientando a experiência sem a necessidade de ações catárticas. E quanto aos planos longos planos-seqüências, estes surgem cada vez que uma ação mais importante está para acontecer, usando-a como forma de gerar tensão ao mesmo tempo em que salienta as conseqüências em jogo (e neste momento, Trapero parece sempre estar usando uma câmera na mão, como sugerem as ‘tremidas’ no quadro). E não posso deixar de citar os dois planos-seqüências que fecham o filme, o primeiro, com determinado personagem dentro de um carro, e o outro, com personagens numa rua tentando fugir de algo.

     Nestes momentos, não podemos deixar de falar do uso sempre eficiente do segundo plano (ou do fundo do quadro), uma vez que a ação do filme sempre ocorre em todas as direções, valendo-se, neste sentido, do uso do eixo forte e dos planos mais longos como forma de guiar nosso olhar para certos detalhes. Com isso, a experiência de se assistir a Abutres torna-se instigante sempre que paramos para pensar nestes detalhes que, em vez de ganhar o palco principal do debate sobre o filme, está ali inserido como mero acessório à historia que, no final das contas, é profundamente humana, trazendo-nos uma experiência rica de significados que, graças à abordagem de Trapero, apenas nos faz prestar um pouco mais de atenção para nos envolvermos emocionalmente com ela. E o voice over, original e orgânica, que surge já no fade off, é prova cabal da ousadia narrativa e estética deste fantástico diretor.

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