AMOR

24/05/2014 19:19

 

  Nota do Site: 5/ 5


    Dono de uma filmografia impecável cujo intuito é escancarar, de forma muitas vezes brutal, a posição de voyeur do espectador (colocando-o como partícipe da narrativa), Michael Haneke consegue com seu novo filme, falar de um sentimento tão comum a qualquer indivíduo, mas tão maniqueísticamente abordado no cinema: o amor. E se você que conhece um pouco do currículo do diretor achou que pelo título de seu novo longa o veterano realizador finalmente se entregaria ao sentimentalismo hollywoodiano, pense duas vezes, pois o rigor estético e o tratamento sem concessões do diretor estão cada vez mais afiados e você vai, invariavelmente, se inquietar ou se incomodar com o que vai ver pois, afinal de contas, só os fortes apreciam o cinema visceral de Michael Haneke!
     Iniciando seu filme já mostrando sua protagonista na cama morta, coberta com flores e em avançado estado de decomposição, o diretor nos tira de cara qualquer ilusão que teríamos acerca de sua história, pois aqui o que interessa é mostrar a partir das cenas seguintes como aquela trágica senhora (Emmanuelle Riva) chegou até ali e, centrando o foco em seu marido, George Lammert (Jean-Louis Trintignant), irá mostrar os esforços desse dedicado indivíduo ao tentar proporcionar algum tipo de conforto à sua esposa, enquanto testemunha a mesma ir se definhando aos poucos.
 
     Estabelecendo uma rigorosa estética onde a câmera fixa do diretor e a diegese absurdamente acurada são os principais elementos de sua mise-en-scene, Haneke após o prelúdio acima citado dá início à sua narrativa numa bem-sucedida cena passada num teatro onde, num plano fixo, o diretor obriga-nos a procurar pelos protagonistas por toda a extensão do quadro (e com isso vemos por alguns instantes todos os outros rostos ao redor). Em seguida, entrando no apartamento do casal, o filme não mais se desenvolverá para fora dali e com isso passaremos a acompanhar o martírio de Anne – dos sintomas ao avanço da moléstia – e os esforços de George na tentativa em lidar com sua esposa mesmo sabendo do seu inevitável destino.

     E aqui reside a genialidade de Haneke. Determinando o apartamento como o único cenário do filme, o diretor nos tira o direito do escapismo. Assim, somos obrigados durante duas horas a testemunhar todo aquele sofrimento, estando impotentes ao sofrimento de Anne. E chega a ser frustrante para nós vermos tantos coadjuvantes que ali chegam para uma visita e, embora constrangidos com o estado da anfitriã, pelo menos tem a possibilidade de sair dali e deixar aquele sofrimento para trás. Uma sutil tortura psicológica que vai se impondo a nós na medida que o filme avança.

     Além disso, é fabuloso constatarmos como Haneke sabe sempre onde colocar sua câmera, pois, ao se recusar movimentá-la pelo cenário, ele nos mostra, por exemplo, a ansiedade de uma visita enquanto George está fora do quadro, fazendo com que compartilhemos do mesmo sentimento deste visitante ou nas vezes em que a câmera submete-se ao ritmo de George acompanhando-o lentamente enquanto este se movimenta pelos cômodos, atraído pelos ruídos e gemidos vindos do quarto da esposa. Assim, nosso ritmo de observação está atrelado à George e nosso ponto de vista depende para onde Haneke quer que olhemos e, mais importante, o que ele quer que sintamos.

     Outro aspecto diz respeito à objetividade sem concessões do roteiro em relação à moléstia de Anne: das primeiras manifestações da doença ao seu desenvolvimento gradual, acompanhamos cada passo, tratamento, momento de frustração, instante de felicidade ou rompante de desespero reprimido, somos observadores e sem poder participar. Vemos cada detalhe quase em tempo real. Nossa inquietação surge assim ao constatarmos a total falta de escapismo e nosso incômodo nasce da aversão involuntária àquela dor, desejando sinceramente estar longe dali.

     Emmanuelle Riva, como a protagonista, está fantástica. Seu detalhismo e entrega para o papel é algo fenomenal. Aliás, a cena em que ela se encontra nua enquanto é lavada por uma enfermeira destaca-se em relação às demais por simbolizar este rigor técnico. O definhamento da personagem só faz sentido para nós e só nos incomoda tanto porque realmente acreditamos em sua doença. Os momentos de choro, os gemidos intermitentes, as tentativas de rememoração e as teimosias típicas da senilidade são retratadas por uma atriz que se permitiu aderir de corpo e alma a um exercício narrativo exaustivo repleto de nuances. E se sua cena inicial apodrecida numa cama já nos choca, preste atenção no momento de sua morte e me diga qual o seu sentimento no momento em que aquilo acontece e o mais importante, o que você faria se estivesse naquela mesma situação?

     Jean-Louis Trintgnant, por outro lado, não deixa de ser menos fascinante já que, mesclando uma resignação junto à uma dedicação que só é possível graças aos anos de convívio (um subtema que Haneke soube explorar com sutileza e profunda economia narrativa), o personagem vai cultivando um sentimento de exaustão que só se externaliza no momento apropriado que, quando chega, funciona satisfatoriamente, surgindo primeiramente no momento em que o sujeito vê imaginariamente sua esposa tocar num piano enquanto George ouve uma música no gravador e depois, no final do filme, voltamos a ver uma representação imaginária de Anne (já morta àquela altura), acompanhando-o para fora de casa.

     E aí, depois deste momento particularmente tocante, eis que no plano final Haneke, numa cruel brincadeira, força-nos a continuar no apartamento, sozinhos, acompanhados por uma igualmente solitária e triste personagem que se encontra ali na sala, compartilhando conosco de uma mesma impotência que nos paralisa e nos mantém inquietos. O drama se foi, mas a ideia de paralisia que paira naqueles que perdem alguém está irremediavelmente no ar!

 

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