AS VINHAS DA IRA

02/07/2014 14:01

 

Cotação: 5/ 5

 

As Vinhas da Ira é o tipo de filme que todo sociólogo ou estudante de Sociologia deveria assistir. Baseado no livro homônimo de John Steinbeck e publicado em 1939, a obra ambienta-se na época da Grande Depressão Americana, quando colonos agrícolas do Estado de Oklahoma migraram para a Califórnia em busca de melhores condições de trabalho, já que a Grande Crise praticamente liquidou a pequena propriedade agrícola, uma vez que os antigos arrendatários destas propriedades foram expulsos de suas terras graças à mecanização crescente do campo (numa tentativa desesperada dos grandes proprietários em saldar suas dívidas com os bancos) e graças também às intensas tempestades de areia que assolaram as áreas rurais de Oklahoma durante praticamente toda a década de 1930. E com isso, a Califórnia passou a ser considerada o destino ideal para estes agricultores expropriados de suas terras e de seu trabalho, já que a Califórnia oferecia trabalho em suas plantações de algodão e laranja, onde os trabalhadores passavam a conviver em acampamentos agrícolas, muitos dos quais insalubres e desumanos. É portanto uma obra sobre a proletarização do trabalhador do campo numa época de profunda recessão da economia americana mas que, passados mais de 70 anos de sua publicação, continua atual e necessário.

Enquanto obra literária, neste sentido, As Vinhas da Ira é fruto do trabalho de Steinbeck como jornalista quando, em 1936 e a pedido de um amigo do jornal São Francisco News, foi enviado para a Califórnia para cobrir e apurar a situação dos imigrantes ali acampados, estabelecendo uma profunda relação com estes trabalhadores, vivendo entre eles e até mesmo viajando para seu Estado de origem a fim de entender melhor o êxodo ao qual se submeteram. No processo, escreveu ao todo cerca de 07 artigos jornalísticos cujo conteúdo formam a “gênese” básica de As Vinhas da Ira e que só foi possível graças à estreita relação do autor com os indivíduos retratados por ele e que graças à licença literária do autor, foram condensados na história da família Joad, concebidos por Steinbeck como uma espécie de metáfora da precária condição social e econômica do trabalhador rural americano.

Assim, não foi difícil que o livro, tão bem recebido por público e crítica (cerca de 500 mil exemplares só no ano de publicação), logo se tornasse alvo do cinema, sendo a história adaptada pelo roteirista Nunnally Johnson e cabendo à John Ford a tarefa de dirigi-lo, tendo o auxílio do não menos fabuloso diretor de fotografia Gregg Tolland, de Cidadão Kane.

Contando a história dos Joad, agricultores arrendatários do Oklahoma, o filme tem início quando o filho mais velho da família, Tom Joad (Henry Fonda), preso por homicídio, volta para casa em condicional. Contudo, ao reencontrar antigos conhecidos no caminho de volta, descobre que as famílias do lugar estão passando por uma severa crise e sendo obrigadas a deixar suas terras por conta da mecanização crescente e por causa das intensas tempestades de areia que assolam o local. Em seguida, reencontra sua família já pronta para deixar o lugar, sob a promessa de conseguirem terra e trabalho na Califórnia, pondo-se na estrada logo em seguida, sob a liderança da matriarca Ma Joad (Jane Darwell).

Entretanto, a ingenuidade de todos da família sob a possibilidade de conseguirem terra e trabalho logo é posto em xeque quando a família começa a se esfacelar quando os mais velhos começam a morrer e, depois, quando a miséria em que se encontram começa a criar dúvidas em alguns membros da família. Inicia-se, desta forma, um processo de desagregação familiar e de empobrecimento que já antevíamos, aliás, logo no começo do filme, quando planos abertos de tratores derrubando casas contrapunham-se às sombras de indivíduos que assistiam àquilo chocados.

O filme, neste sentido, é repleto de momentos de puro simbolismo e de dramaticidade. Como o instante em que Ma Joad seleciona objetos para serem queimados no forno à sua frente ou mesmo no tocante flashback de determinado personagem que acabara de perder suas terras. E é interessante como, neste flashback, tanto o fazendeiro expropriado quanto o motorista do trator têm cada um suas razões de fazerem o trabalho que fazem, guardadas as devidas proporções, lógico, e que demonstra a preocupação de Steinbeck e sobretudo do roteirista Nunnally Johnson em estabelecer todos os aspectos do conflito pesquisado.

Percebam, por exemplo, que o processo de desagregação dos Joad segue uma hierarquia perversa e lógica: primeiro, morrem os mais velhos, depois, invertem-se os papéis dos chefes da família, dada a necessidade do momento (e que será explicada no magnífico e melancólico diálogo final), em seguida, os agregados debandam-se, seja por covardia ou necessidade (aqui temos o exemplo do genro), só para chegar aos filhos, justificando, dessa forma, o destino de Tom Joad que serve aos propósitos literários de John Steinbeck em dois níveis: no primeiro, representa a espoliação econômica e social sofrida por milhares de pequenos proprietários rurais americanos e, num segundo nível, representa a própria conscientização de uma classe social que, como não poderia deixar de ser, embora não compreenda filosoficamente toda a lógica por trás da exploração sofrida, sente mesmo assim a necessidade de lutar por melhores condições de vida e de trabalho (e que na vida real rendeu à Steinbeck a “suspeita” de comunismo), um arco dramático fabuloso que é ainda mais salientado graças à dignidade, intensidade e carisma com que Henry Fonda compõe seu personagem, num dos seus melhores trabalhos em toda a sua carreira, certamente, e que faz de As Vinhas da Ira um filme singular dentro de Hollywood, assim como Tempos Modernos, de Chaplin, justamente por trazerem em sua narrativa a exploração econômica e social.

Jane Darwell é outra que merece destaque no longa. Compondo uma personagem forte e decidida, Ma Joad é um daqueles tipos que precisam adaptar-se à situações precárias a fim de manter a família unida. Não à toa, sua primeira ação ao rever o filho depois de anos é perguntar-lhe se ele enlouqueceu ou está lúcido pois, devido à precariedade de sua família, é ela quem claramente chefia a família naquele momento, pois o marido não apresenta a mesma força e lucidez. Além disso, são nas conversas com o filho que Ma Joad revela-lhe seu temor sobre o futuro da família. E se num momento particularmente tocante ela praticamente convence Tom em não ir embora, no outro sua resignação acerca da fuga do filho nos sugere que, afinal de contas, aquela família depende apenas dela e de seu pragmatismo para subsistirem com certa dignidade. E foi graças à essa complexidade que Jane Darwell merecidamente levou o Oscar de Atriz Coadjuvante em 1940 (ano de lançamento do filme).

E se o roteiro e as interpretações do filme elevam a qualidade da narrativa (não posso deixar de mencionar aqui o trabalho belíssimo e eficaz de John Carradine como o fascinante e trágico ex-pregador Casy), a parte técnica é também de um virtuosismo brilhante, desde a composição das fazendas devastadas por vendavais e tratores, passando pelos acampamentos vistos ao longo do filme, com destaque para o primeiro, onde, num plano longo de John Ford, o cineasta adota um ponto de vista subjetivo como se estivéssemos no caminhão dos Joad. Além do mais, o primeiro plano de Ford, com Fonda andando numa encruzilhada é de um simbolismo fascinante e revelador, e que se contrapõe de forma belíssima com o último plano deste personagem quando o mesmo não passa de um ponto negro a se movimentar na paisagem. E o que dizer da trilha sonora animada do início do filme e que retorna, agridoce, no final?

E que filme... Um clássico que deveria ser mais do que assistido, mas estudado pelas novas gerações de cinéfilos, simplesmente porque o longa-metragem apresenta conflitos que perduram até os dias de hoje, graças à exploração capitalista, que subsiste com suas contradições e conflitos e valendo-se da profunda desigualdade que produz e o mantém, no final das contas. 

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