BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS

25/05/2014 17:16

 

 Nota do Site: 5/ 5

    

     Charlie Kaufman é uma unanimidade entre os roteiristas de Hollywood. Inventivo e inteligente, o roteirista geralmente concebe histórias que, aparentemente “cerebrais” demais, nos fisgam por conter nas entrelinhas um certo apelo emocional que funcionam justamente pela forma inusitada como sua narrativa se desenvolve. Escritor de obras como Natureza Quase Humana, Quero Ser John Malkovich, Adaptação, Sinédoque Nova York e, neste caso em questão, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças.

     Contando a história de Joel Barish (Jim Carrey, no melhor papel dramático da carreira), um sujeito tímido que, ao descobrir que sua namorada Clementine Krucynsky (Kate Winslet, genial) se submeteu a um procedimento médico para “apagá-lo” da memória, decide fazer o mesmo procedimento e “apagá-la” também. Contudo, o procedimento apaga as memórias de forma cronológica inversa, começando pelas mais recentes até chegar nas mais antigas. Assim, enquanto avança no procedimento, Joel vai redescobrindo todo o encanto e paixão que sentia por Clementine e, consciente do método a que se submeteu (justamente por ouvir tudo o que se passa ao seu redor, enquanto está em estado de “inconsciência”), tenta descobrir uma maneira de reverter essa situação, buscando preservar algumas memórias até o fim do procedimento, no dia seguinte. Além dessa trama principal, somos apresentados também à trama envolvendo Mary (Kirsten Dunst) e sua paixão pelo dr. Mierzwiak (Tom Wilkinson), além dos assistentes Stan (Mark Rufallo), apaixonado por Mary, e Patrick (Elijah Wood), que vem tentando conquistar Clementine a partir das referências de memórias dela sobre Joel.

     Dirigido por Michel Gondry, parceiro habitual de Kaufman em muitos de seus trabalhos, o filme é eficiente ao nunca confundir o espectador com uma estrutura narrativa aparentemente tão confusa e, o que é melhor, alcança um grau de sensibilidade fundamental para que nos importemos com a bela (e caótica) história de amor de Joel e Clementine. Além disso, o filme se beneficia por se utilizar de recursos visuais econômicos e inventivos, como por exemplo o uso constante da iluminação na representação visual das memórias sendo apagadas, quando o fundo do quadro surge imerso em escuridão, onde somente os personagens em primeiro plano são iluminados. Assim, quando uma memória de Joel é apagada, Clementine simplesmente “escapa” para fora do foco (como na belíssima cena passada num lago congelado).

     Além disso, ao criar entradas falsas no cenário para onde Kate Winslet pudesse se “esconder”, Gondry se permitia rodar planos mais longos sem ter a necessidade de ficar “cortando” o tempo todo. Assim, bastasse que sua câmera se fixasse em Joel e no seu desespero em constatar que estava perdendo suas memórias sobre Clementine. Em outros momentos, Gondry e sua equipe criavam cenários cujo tamanho desproporcional dava a ideia de que nossos protagonistas eram pequeninos, nas sequencias passadas na infância de Joel (como na cena onde os dois literalmente tomam banho na pia da cozinha). Ou então, na cena passada na cozinha da casa de infância de Joel, manipulava-se a profundidade do campo onde, trazendo Clementine para o primeiro plano, enquadrava Joel no fundo do quadro, ficando em perspectiva menor do que Clementine.

     É claro que era inevitável o uso de efeitos visuais mais rebuscados em cenas que a trucagem técnica e cênica não eram suficientes, como nas cenas onde os cenários se desintegram ou quando indivíduos vão sumindo enquanto Joel tenta se esconder com Clementine em seu subconsciente. E é interessante notar como Joel, querendo saber quem era Patrick, não conseguia visualizar seu rosto simplesmente porque a rigor, nunca tinha o visto antes, um detalhe que enriquece ainda mais o roteiro de Kaufman e a direção de Gondry.

     Mas não são só invencionices técnicas que fazem de Brilho Eterno um filme soberbo. A carga emocional por trás disso é absurdamente bem escrita e bem conduzida. Além do mais, o trabalho do montador Valdís Oskarsdóttir merece créditos pela forma segura com que conectou cada subtrama sem deixar o filme confuso ou mesmo hermético. Além disso, os diálogos de Kaufman, sempre inspirados, se tornam bem mais apreciáveis quando se repetem em situações diferentes, como a conversa entre Joel e Clementine no início e quase no fim do filme, indicando respectivamente, o reencontro entre os dois depois do procedimento e o primeiro encontro dos dois enquanto Joel rememora este momento.

     Aliás, a própria estratégia de apagar as lembranças de Joel no sentido inverso é a ideia perfeita para justamente acreditarmos naquela relação. Como Joel, somos apresentados àquela relação em direção àqueles momentos que mais importam para o protagonista e, como isso, compreendemos sua dor ao ter de lidar com o inevitável fim dessas memórias. Mais do que isso, Joel Barish vai aprendendo que, para além da manutenção dessas lembranças, é a soma delas que o tornam um homem completo, alguém cujas experiências o moldaram-no. Assim, abrir mão de Clementine é abrir mão de uma parte importante de sua vida.

     É por causa disso talvez que a sequência passada no momento em que sua última memória está sendo apagada seja tão tocante: enquanto revive o dia em que conheceu Clementine, Joel também externaliza toda a sua insegurança naquele exato instante e, assim, quando Clementine sugere que ele “finja” um final diferente para aquela lembrança, a frase “encontre-me em Montalk” seja tão significativa pois, além de nos apontar para a cena inicial do filme, ainda nos sugere que, mesmo sem suas memórias, dois indivíduos intimamente ligados possam mais uma vez se aproximar e se apaixonar como antes, uma epifania que se fosse apresentada numa comédia romântica qualquer seria apenas piegas mais aqui ganha um sentido discreto de catarse por parte do público que acompanhou encantado por quase duas horas essa história estranha e apaixonante.

     E não é fantástico que duas pessoas, mesmo sabendo que sua relação esteja fadada ao fracasso, decidem correr o risco mesmo assim simplesmente porquê estejam [mais uma vez] apaixonados um pelo outro?

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