ESSES AMORES

24/05/2014 20:34

 

Nota do Site: 5/ 5

 

     É muito comum que diretores usem de experiências vivenciadas como matéria-prima para seus projetos mais intimistas. É comum também que estes mesmos realizadores misturem estas experiências com o elemento ficcional de seus projetos. Mas é absolutamente incomum que tais realizados usem ficção e fatos reais para se auto-homenagear e conseguir, sem pedantismos ou arrogância gratuita, homenagear também o instrumento da própria arte. É o caso deste belíssimo Esses Amores, último filme do genial e injustamente subestimado diretor francês Claude Lelouch que, neste filme, cria uma história que de forma indireta, nos conta num tom nostálgico e auto-referencial todo o amor dele pelo cinema e seu fabuloso mecanismo de contar histórias que nos apaixonam e encantam desde os idos tempos dos irmãos Lumiére.
 
     Logo no início do filme, um letter nos adverte que a história que virá a seguir é um apanhado de várias estórias ouvidas ao longo dos anos e que tem sim, qualquer semelhança com fatos reais. Em seguida, imagens de mulheres sobrepostas à uma imagem de uma orquestra compondo um tema incidental nos sugerem muito sutilmente uma certa metalinguagem, que se insinua sem estardalhaço, mas que marca, de uma forma muito particular, o verdadeiro tema do filme, e que não se debruçará apenas na história romântica da protagonista Ilsa (Aldrey Dana). História essa que se inicia por meio de imagens em preto & branco extraídas diretamente da cartilha clássica do cinema mudo, onde vemos a dramática história da heroína e sua trágica mãe, até o momento em que conhecem Maurice (Dominique Piñon), futuro padrasto da protagonista e projecionista do [fictício] Cine Éden, e que lhe legará também esta atividade. Daí em diante, passamos a acompanhar a jovem Ilsa e o seu envolvimento com seu jovem namorado (Raphaël), depois com o general alemão Horst (Samuel Labarthe), o soldado e o correspondente de guerra americanos, Bob Kane (Jacky Ido) e Jim Singer (Gilles Lemaire), até o advogado e pianista Simon (Laurent Couson) que, surgindo em flash-forwards num tribunal, assumirá a função de narrador durante todo o filme, fazendo com que sua retórica de defesa da personagem guie nosso olhar para a própria história de Ilsa, além de, no processo, misturar esse discurso com memórias de sua própria vida, entrelaçando, de uma forma bastante subjetiva, a sua história com a história de sua cliente.
 
     Há ainda, nesta estratégia narrativa, o esforço de Lelouch em mostrar uma personagem “desencantada” de qualquer traço romântico, uma vez que, trazendo uma protagonista que se entrega à novas paixões toda a vez que se vê numa situação de invulnerabilidade, Lelouch usa seus flash-forwards para telegrafar ao espectador que cada escolha que fez originou consequências dramáticas àqueles que estavam ao seu redor: o envolvimento com o general nazista causou a morte de seu padrasto; o envolvimento com os amigos Bob e Jim levaram ambos a se destruírem mutuamente, bem como a culpa de Jim o levou a arruinar temporariamente a vida de Ilsa que, por sua vez, só conseguiu alcançar a redenção após conhecer e conviver com o advogado. Esse advogado, aliás, é o próprio Lelouch que, metaforicamente, está defendendo seu cinema e suas predileções temáticas daqueles que sempre o acusaram de artificial e “americanizado”.
 
     Essa sucessão de amores intensos e auto-destrutíveis, neste sentido, apresenta uma estrutura episódica, burocrática e clichê, já que, a rigor, Ilsa sempre é salva por alguém que a retira do apuro. Aí, ela se apaixona automaticamente e se entrega a este(s) como compensação e permanece ligada à ele(s) até o momento em que o ciclo recomeça, com novas situações de perigo em outros contextos. Ou seja, clichê!

     Porém, não é a narrativa de Ilsa que interessa a Lelouch. Na verdade, toda escolha narrativa do diretor está ali para um propósito que se encontra transcendente ao écrã. Existe um discurso para além da diegese fílmica, que é o discurso da sedução, tanto da imagem quanto do corpo. É um discurso que nos atrai para determinadas paixões, que determinam nossas vidas e nos arrastam adiante. São ciclos, que se repetem porque insistimos ser alimentados por ele. Se Ilsa se entrega às suas paixões sem pudores, este comportamento repete-se em vários outros momentos, desde o garotinho Coco e seu interesse pelas imagens do projetor de Maurice, passando pelo flashback/ micro-história do índio que, motivado pelo sonho da riqueza, enfrentou carroças e cavalos numa corrida em busca de terras. Além disso, cada personagem ancora-se num hobbie artístico como o general Horst e sua escaleta e o advogado Simon e seu amor pelo piano e o trompete.

     Esse discurso da sedução, vale ressaltar, é a mão de Lelouch a nos apontar para o porquê da predileção dele para histórias eminentemente românticas, que se explicam diegeticamente toda a vez que o filme nos leva a fazer a seguinte reflexão: como nasce uma paixão por alguém, por algo? Qual é a imagem captada no cotidiano que leva nossa mente a elegê-lo como ponto de partida para a nossa adoração? Que mágica ou fetiche existe(m) nessa(s) imagem(ns) do cotidiano que nos tocam e nos deixam ligados a ela permanentemente? O que é mais forte: a estética, a virtuosidade da música, a dialética do discurso político, o cotidiano captado filmicamente? Que espécie de aura reside em nossas paixões mais íntimas, que chegam mesmo a definir quem realmente podemos ser?

     Não quero, de modo algum, responder a essas questões, inseridas de uma forma muito particular no interior dessa narrativa e que só podem ser extraídas se o espectador, assumindo uma espécie de pacto com o diretor, abstrair a ficção e mergulhar nas entrelinhas do filme. Antes de mais nada, Esses Amores é o filme que Claude Lelouch teceu - consciente ou inconscientemente – durante todos esses cinquenta anos, como forma de explicar às próximas gerações o porquê dele ter feito sempre as mesmas histórias românticas.

     É nesse filme que, de uma forma geniosamente discreta, Lelouch passa a limpo seus cinquenta anos de carreira colocando-se a si mesmo dentro deste discurso da sedução da imagem. Imagem essa que segundo ele mesmo comenta em off, foi no “beijo daqueles dois [Ilsa e Simon] que  [ele] decidi[u] filmar aquele tipo de história”. Foi ali que o jovem Coco revelou-se como o pequeno Claude que, com uma câmera na mão no melhor estilo Dziga Vertov, começara a dar os primeiros passos na documentação de cotidianos que se viriam a se tornar seus melhores projetos. E é por isso que a sequência onde vemos em revista todos os astros e estrelas filmados por Lelouch nos toca de uma forma muito particular, pois essa é a singela forma de Claude Lelouch homenagear aqueles que ajudaram a externalizar sua visão de mundo. E se considerarmos que o filme todo já é uma auto-homenagem declarada, é gentil da parte dele abrir este espaço para seus atores.

     E não é só. Demonstrando coerência ao respeitar seus personagens, Lelouch ainda nos brinda com uma sequencia final que, trazendo a protagonista Audrey Dana (eficientíssima!) como a já madura juíza sobrinha da envelhecida Ilsa, conversando com o mesmo ator que, no início do filme, representou o jovem desprezado pela jovem Ilsa, mostra-se como uma brincadeira narrativa que tem origem na frase “vejo você numa outra vida” que, a rigor, representa a visão de Lelouch sobre o próprio cinema. É como se o autor nos dissesse que o cinema, sendo maior que a vida, transcende e transcenderá sempre, o espaço da tela, tornando-se imortal e atemporal.

     Quanto à Ilsa, assumindo-se desde o início como o auterego do autor, materializa-se numa senhora idosa que observa, de um camarote, o compositor Francis Lai compondo o tema para um filme que, ficcionalmente, está contando a biografia desta senhora que já sabemos que nunca existiu, de fato. Mas essa metalinguagem nada mais é do que Lelouch brincando com nossa percepção e atiçando nossa curiosidade sobre a veracidade da sua história.

     Sabemos que Ilsa não existiu, mas sua estória nasce a partir de uma miscelânea de estórias contadas e/ ou vivenciadas por Lelouch ao longo da vida. Nascida a partir de uma imagem específica (um casal se beijando enquanto Lelouch registra com sua câmera), o diretor se preocupa em dar a vida àquelas pessoas captadas, uma vida que, sabemos, não corresponde ao real, mas ao imaginário do diretor que, assim, sem se preocupar com o verossímil, nos convida a compartilhar de uma experiência que, ele sabe, só será gratificante se assumirmos a “suspensão de descrença”, e compreendermos que tudo ali é verdadeiro porque faz parte de um discurso diegético que só faz sentido quando inserido num contexto onde um diretor renomado passa a limpo sua carreira, seus temas, predileções e pontos de vista. Cabe a nós revisitá-lo e lançarmos um olhar contemporâneo a alguém que, em vida, gozou da imortalidade legada apenas aos grandes gênios do cinema, e que ele certamente mereceu.
 
     Quanto a mim, só tenho algo a acrescentar: 29 de Setembro de 2012 – o ano em que descobri o cinema de Claude Lelouch!

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