EXIBIÇÃO DO LONGA “14 DE JANEIRO: TERRA, SAMBA E SANTO” MARCA A ESTRÉIA DO CINE CLUBE PRAÇA 14

03/11/2014 23:35

 

UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA

Documentário foi referência decisiva para a homologação da certificação de segundo “Quilombo Urbano do país”.

 

Lembrar da pesquisa feita para o documentário 14 de Janeiro: Terra, Samba e Santo é lembrar sobretudo de momentos bons passados ao lado de pessoas formidáveis e carinhosas do qual eu desconhecia completamente. Como pesquisador, o impulso inicial fora o da novidade, da exclusividade. Afinal, para um estudante como eu, era impossível imaginar que existiria no espaço urbano de Manaus uma tradição tão rica, mas ainda assim tão desconhecida pelo restante da cidade.

E foi mediante este impulso que partimos para aquele Bairro. Minha primeira entrevista de campo deu-se com um indivíduo adorável e que continha nos traços rugosos do rosto a marca indelével da experiência e da tradição: Mestre Heitor. Sentado em sua irrequieta cadeira de balanço, ele, com a calma comum dos mestres, foi tecendo-nos pacientemente um fio de memória que descortinava-se para nós como majestoso testemunho de uma época do qual crescíamos sem a menor noção. Nas palavras caridosas de Mestre Heitor, a história de seus antepassados era a própria história de Manaus, a Manaus dos trabalhadores, das lavadeiras e dos artistas populares, avessos às narrativas oficiais dos coronéis e empresários da Belle Époque. Naquela manhã de terça, havíamos adentrado em terreno novo e pronto para ser explorado. Iniciava-se, naquele momento, uma relação e uma convivência que descambaria na produção do documentário acima referido.

Neste sentido, vieram outros momentos, outros projetos, garimpando uma riqueza cultural da cultura negra ao mesmo tempo em que se estipulava uma nova perspectiva para a história da nossa cidade. Veio, enfim, a possibilidade de traduzir tudo aquilo por meio do poderoso recurso audiovisual, cuja função primordial e inegociável era a de servir como documento histórico para aqueles indivíduos, dando-lhes a possibilidade de apropriação daquele material para usufruto coletivo e identificação cultural. Entretanto, na medida em que os pesquisadores do Núcleo de Cultura Política da UFAM (eu, Ademir Ramos, Priscilla Printes Travassos e Paula Paiva) avançavam na pesquisa principal e os diretores Cristiane Garcia e Paulo Cezar Freire avançavam na pesquisa complementar, fomos percebendo que nossa intenção inicial de produzir um filme em 25’ era impossível, dada a quantidade de material recolhido e que não poderia ficar de fora.

 

A PESQUISA PARA O DOCUMENTÁRIO

O potencial cultural encontrado  

 

O esforço intelectual empregado na produção do documentário está presente em todo o filme. Aliás, a opção por “capitular” o filme partiu de uma observação prévia da equipe de pesquisadores do NCPAM: já na primeira conversa com Mestre Heitor, observou-se que a Praça 14 apresentava três frentes de pesquisa: A primeira, dizia-se respeito à origem do lugar a partir dos primeiros ex-escravos vindos sobretudo do Maranhão; a segunda, referia-se à religiosidade do lugar pois, ao adotar São Benedito como padroeiro, fincava importante marco de resistência cultural e histórica à elite de origem portuguesa da cidade; e o terceiro, referia-se, claro, à importância do samba para a comunidade, dos folguedos de rua, passando pela Escola Mixta até a Vitória-Régia.

Assim, optou-se pela divisão do filme em três momentos, a territorialidade, a religiosidade e o folclore. Sem perceber, estávamos plantando uma “cilada” incontornável: mesmo sabendo que nosso filme seria curto, não fazíamos idéia da quantidade de informações que recolheríamos, o que nos levou (ainda bem) a estender o filme para um longa-metragem.

Desta forma, é lícito observar a participação incansável de Jamily Santos no processo. Como sobrinha da líder espiritual da comunidade, Tia Cimá, Jamily foi o elo fundamental entre a equipe de pesquisa e filmagem e os comunitários da Rua Japurá. Usando de sua autoridade natural de liderança, foi ela quem possibilitou à equipe em buscar informações que se traduziram posteriormente nas fabulosas cenas vistas no filme.

Além disso, a permanência da equipe por longos 11 meses permitiu-nos testemunhar praticamente 01 ano inteiro dentro daquele bairro, desde os preparativos da Vitória-Régia para o carnaval, passando pelo aniversário do bairro, festejos religiosos até culminar no registro do triste fato de falecimento de Tia Cimá, algo que nos abalou mas que reforçou nossa convicção em entregar um material audiovisual à altura daquelas pessoas que aprendemos a respeitar e admirar.

Esta admiração traduziu-se em imagens bem construídas: desde os inúmeros planos-detalhes das mãos dos comunitários fazendo alguma atividade até a escolha inspirada de canções que retratassem aquela cultura e sobretudo, as passagens mais emblemáticas do filme (inclusive o riquíssimo material iconográfico presente no filme), tudo foi pensado levando em consideração o impacto cultural que aquilo poderia ter. Minha favorita, entretanto, é a procissão: as filmagens no tempo presente mesclam-se à imagens de uma procissão do passado, em fabuloso p&b, uma escolha narrativa acertada por parte da diretora Cristiane Garcia. Era necessário que os comunitários gostassem do que visse e, sobretudo, gostasse de se ver em tela, pois acreditávamos que o orgulho desse momento levaríamos à apropriação objetiva desse material.

E foi o que aconteceu.  Ao se apropriarem, os comunitários fizeram deste um instrumento de luta social, cultural e política. Hoje em dia, a venda dos DVDs serve para organizar a Festa do Santo (e reza a lenda – e sou obrigado a acreditar – que São Benedito não permite a reprodução de cópias piratas!) e, tendo reorganizado a AMONAM (Associação do Movimento do Orgulho Negro do Amazonas), os comunitários se utilizaram ainda do conteúdo fílmico respectivo a fim de compor a peça principal em sua defesa frente à Fundação Palmares a fim de garantir-lhes o título de “Quilombo Urbano de Manaus”. E conseguiram!

Como pesquisador e colaborador direto da equipe de filmagem, tenho somente que agradecer esta experiência inesquecível. Dos inúmeros quilômetros e ruas percorridos pelo bairro atrás de potenciais informantes-chaves, passando pelas intermináveis horas de conversa ao telefone com Cristiane Garcia, só tenho que afirmar meu privilégio por ter participado deste processo e com ele amadurecido, como pesquisador e indivíduo.

E ver os pequenos, no pátio da Associação Batukada, vendo certamente pela primeira vez e identificando, vez ou outra, uma rua ou uma pessoa que lhes parecia familiar, foi um desses momentos gratificantes que reforçaram a convicção de que nossas opções estavam certas e que, graças à São Benedito, o filme está irremediavelmente entregue aos seus fantásticos atores e donos por direito: os comunitários da Comunidade de Barranco de São Benedito da Praça 14 de Janeiro!

 

 

Khemerson Macedo

Professor e Pesquisador

 

P.S.: Para saber mais sobre a Associação Batukada, clique aqui.

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