GAROTA EXEMPLAR

07/10/2014 00:32

 

Cotação: 5/ 5

 

Atenção: contém alguns spoilers!

 

David Fincher é um diretor que se sai invariavelmente bem quando retrata em seus filmes indivíduos racionais em situações complicadas ou mesmo sem saída. Em vez do melodrama e do desespero, estas narrativas optam pela reação objetiva aos fatos que se apresentam, levando-os invariavelmente à buscarem uma reflexão plausível sobre os fatos que se apresentam na tentativa de tentarem contorná-las. E Garota Exemplar, filme baseado no livro de Gillian Flynn (e roteirizado por este), é repleto destes momentos.

Assim, na primeira vez que vemos Nick e Amy Dunne (Bem Afleck e Rosamund Pike), o voice over que ouvimos por parte de Nick se compromete em nos plantar uma dúvida vital: será mesmo que aquele personagem, que ainda mal conhecemos, será capaz de cometer um crime contra sua esposa e, neste sentido, será Nick um manipulador? Esta pergunta, vital diga-se de passagem, é o principal fio condutor da narrativa pois, a partir do momento em que mergulharmos nos flashbacks responsáveis por nos mostrar como aquele belo casal se conheceu e, sobretudo, como a dinâmica deles foi se desenvolvendo com o passar dos anos, pontuando ao espectador o desgaste inevitável de uma relação que poderia sim, terminar numa eminente tragédia.

Desta forma, ao plantar inteligentemente estas dúvidas na cabeça do espectador, Fincher e Flynn passam a perscrutar cada vez mais a personalidade de Nick em busca de mais razões para que ele pudesse ter matado a esposa: afinal, foi por causa da sua recusa em ter filhos? Foi por causa das promessas que ele fizera à Annie, sua jovem amante? Ou foi simplesmente devido ao fato de que Amy, afinal, representava um cotidiano medíocre com o qual aquele sujeito havia mergulhado? Porque, afinal de contas, Nick é o único sujeito daquele bairro que parece não se importar emocionalmente com o desaparecimento da própria esposa? Estas questões, aliás, são reforçadas sempre que vemos Bem Affleck reagindo a elas com certo blasé ou mesmo estranhamento, passando-nos a impressão de que a culpa que paira sob Nick pode sim ser resultado da própria personalidade fugidia e indiferente do sujeito.

E é. E na verdade quando essa revelação surge, bem no meio do segundo ato, somos obrigados a revisar tudo aquilo que víramos pois, a partir do momento em que descobrimos que aquele personagem que vínhamos investindo nossas emoções contra, agora passa a ser o mocinho acuado e desesperado em provar sua inocência, numa situação onde os fatos praticamente colocaram-no numa situação incontornável. Então, numa narrativa que se desenvolveu como um thriller agora mostrar-se-á como um inteligente e intrincado estudo de personagens fascinante e que trará dois personagens num complexo e rebuscado jogo de gato e rato, onde vencerá aquele que tentar fazer com que seu oponente se exponha mais.

E neste sentido, Rosamund Pike brilha absoluta cada vez que surge em cena pois, mostrando-se primeiramente como uma pessoa espirituosa e cativante, a atriz vai nos premiando aos poucos com suas sutis mudanças de ânimo e que sugerem o marasmo que passa a tomar conta de sua vida. Surgindo primeiramente em flashbacks, Pike nos brinda na segunda metade da projeção com uma interpretação completamente radical em relação à sua aparição inicial. Uma mudança de personalidade que, aliás, Fincher e Flynn fazem questão de mostrar aos poucos, salientando sempre a capacidade imaginativa e manipulador com que aquela personalidade pode ter frente aos outros personagens ao seu redor. E esse cuidado na composição da personagem contribui imensamente para que Pike se torne desde já uma das melhores e mais assustadoras personagens femininas já vistas no cinema. E a cena que se passa na cama de determinado personagem secundário faria, em comparação, Sharon Stone corar de vergonha, certamente.

Mais se Rosamund Pike brilha absoluta neste filme (e que com certeza não passará ilesa quando chegar a temporada de premiações), Ben Affleck também merece destaque em sua atuação pois, se a revelação sobre o destino de Amy é tão surpreendente, é graças à contida porém magnética interpretação de Affleck a responsável, em parte, por esta reviravolta. Chamando para si a responsabilidade de compor um suspeito com potencial para a violência, Affleck não passa de um sujeito comum, cheio de defeitos, preso à uma situação excepcional e quase incontornável. Disposto a limpar seu nome acerca das acusações que lhe imputam, Nick Dunne continua a ser um sujeito de inteligência mediana que não consegue pensar no mesmo nível que seu oponente, uma constatação que frustra a ele e aos espectadores. Mesmo assim, é dessa incapacidade de descobrir uma maneira de livrar-se daquele estado de coisas que, surpreendentemente, gera uma fabulosa tensão no espectador. Além disso, David Fincher e Gillian Flynn merecem créditos por mostrarem a escala de comoção acerca do desaparecimento de Amy, da mobilização dos vizinhos até a exaustiva exploração deste evento pelos telejornais sensacionalistas que pontuam toda a trama.

E se a narrativa por si só carrega uma força e uma complexidade nada óbvia, o filme de David Fincher é também beneficiado imensamente pela fotografia (em 35mm) de Jeff Cronenweth, que concebe cada quadro mergulhando-a numa paleta de cores escuras que salientam radicalmente o clima tenebroso que permeia cada passo de Nick e Amy Dunne. Além disso, o design de produção do filme mostra-se eficiente ao salientar certos detalhes dos ambientes (como ao focar rapidamente a barriga saliente de determinada personagem) ou mesmo o plano que traz dois personagens envoltos em neve e que remete diretamente à uma lembrança de certa personagem. E por último, devo mencionar o trabalho fabuloso da dupla Trent Reznor e Atticus Ross, cuja composição sutil, quase imperceptível, serve para salientar o clima de desesperança que toma conta da vida de Nick no ato final e que contribui imensamente para o nosso envolvimento com a trama.

E, como se já não fosse suficiente, Garota Exemplar encerra-se numa nota melancólica que, remetendo à uma passagem importante do filme, dá à trama subsídios para boas discussões pós-sessão. Para mim, mesmo não envolvendo uma resolução, no sentido objetivo do termo, aquele último plano representou para mim uma verdadeira tragédia pois, não precisamos nos esforçar muito para compreender que, se fosse na vida real aquela situação nunca acabaria bem. Mas em se tratando de um filme, não posso deixar de admirar a coragem de um cineasta que acabara de apresentar sua trama filosoficamente mais ambiciosa, pelo menos desde Clube da Luta. E não, a referência não tem nada a ver com a conclusão apresentada neste Garota Exemplar.

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