O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA

09/07/2014 01:06

 

Cotação: 5/ 5

 

O Discreto Charme da Burguesia não é um filme pra se escrever imediatamente, após vê-lo, pois exige certo tempo de depuração para compreendermos todos os aspectos oferecidos por ele, pois nada visto ali parece ser despropositado, representando rigorosamente o ponto de vista ácido e crítico de seu diretor, o provocativo Luis Buñuel. A rigor, o filme é um discurso sobre as aparências e práticas burguesas de um seleto grupo de personagens em algum lugar na frança e retratadas com o particular brilhantismo do diretor que, diga-se de passagem, teve relativo sucesso de crítica com este filme, tanto que levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1973.

Mostrando-se comedido em suas habituais “intersecções” surrealistas, Luis Buñuel nos traz seu seleto grupo de protagonistas chegando numa refinada mansão para um requintado jantar. Aliás, basicamente o filme se restringe a acompanhar este seleto grupo (além de um curioso bispo que insiste em trabalhar como jardineiro) convidando-os uns aos outros para jantares e mais jantares, cujas conversas invariavelmente versam sobre formas corretas de se preparar e beber dry martinis, discussões superficiais sobre política, além de pequenas fofocas sobre uns e outros. É um filme que, como já disse, fala sobre aparências e a forma distorcida e blasé com que a burguesia enxerga os grupos e classes sociais economicamente e culturalmente inferiores, mesmo que, neste filme, as situações bizarras que pontuam o longa colaboram para pôr nossos protagonistas em situações atípicas.

Neste filme, esta estrutura narrativa ainda flerta de forma inteligente com uma perspectiva onírica que ganha mais importância na medida em que o filme avança. Assim, por exemplo, quando vemos o grupo num palco de teatro diante de uma platéia enfurecida que exige deles que continuem a “interpretar”, estamos diante do simbolismo perfeito para aquilo que Buñuel quer comunicar: afinal de contas o “discreto charme” da burguesia não passa, na ácida visão do cineasta, de um conjunto mais ou menos organizado e articulado de regras e condutas sociais criadas apenas para estabelecer “máscaras sociais” que determinam uma imagem sedutora de uma classe que, no final das contas, não passam de representações (daí o simbolismo do teatro).

E se o “simbolismo da representação” se mostra no contexto do filme como um sonho de um dos protagonistas, isso não tira a credibilidade daquilo que Buñuel quis comunicar. Afinal de contas, as situações “fora de controle” que os personagens se encontram, e que se revelam como passagens oníricas de certos personagens, podem revelar, numa análise mais aprofundada, o medo constante de certos personagens pela perda do controle e que nestas passagens cristalizam-se em situações-limite. Assim, se determinado personagem expressa seu medo pela auto-exposição (o palco do teatro), outro além de sonhar o sonho do outro, sonha também com um jantar completamente falso (o palco do teatro aqui representa pra este a perda da representatividade e o “frango de borracha” demonstra a frugalidade da etiqueta burguesa). Há ainda o inspetor de polícia que sonha com o fantasma de um sargento morto e que vem para libertar os presos e há a interessante passagem (não-onírica) do padre que se vê obrigado a dar extrema-unção ao assassino moribundo de seus pais e que opta por uma escolha nada usual para um pároco.

Aliás, para aqueles que conhecem minimamente a filmografia do mestre Buñuel, sabem que o clérigo sempre foi um dos seus “alvos” favoritos de sua corrosiva crítica, seja pontualmente – como o belíssimo final de O Anjo Exterminador – seja como tema principal – no caso do clássico Veridiana – e tantos outros. Aqui, Buñuel opta pela ironia ao conceber um bispo que sente a necessidade de trabalhar como jardineiro para poder sentir melhor as agruras de sua paróquia sem, contudo, desvencilhar-se do convívio cômodo com o poder e o prestígio social, apontando o dedo dessa forma para o papel ambíguo – em cima do muro – com que a Igreja parece fazer questão de conviver. É mais um jogo de aparências com que o cineasta lida habilmente neste longa.

Aliás, cada personagem parece defender sua particular carga de aparências: temos aqui o embaixador do fictício país de Miranda, Don Rafael Acosta (interpretado pelo ótimo Fernando Rey), que está constantemente “vendendo” uma imagem positiva de seu país, mesmo com tantas opiniões negativas contra, e que se vale de sua relação com os amigos burgueses para salientar esta “imagem”; o casal Thévenot (vividos respectivamente por Paul Frankeur e Delphine Seyrig), cuja preocupação constante com o decoro e a etiqueta os tornam indivíduos frugazes e supérfluos (além do fato de Madame Thévenot manter uma relação paralela com o Embaixador) ou mesmo o casal Sénéchal (Stéphane Audran e Jean-Pierre Cassel), que parecem esforçar-se sempre para se colocar no “mesmo nível” que o restante dos amigos mas que estão constantemente boicotando-se, com destaque para a seqüência onde o casal mantém seus amigos na sala enquanto transam enlouquecidamente no jardim. E por último, há a moça (Bulle Ogier) que destoa do restante do grupo por simplesmente não conseguir manter o padrão de decoro por causa de sua bebedeira.

Existe também no filme uma recorrência constante à imagens de “fantasmas”. Eles estão espalhados em vários pontos no filme, seja no flashback do depressivo soldado que recebe a visita da mãe e do pai biológico mortos, seja no flashback de um outro soldado ao contar um sonho onde fantasmas de amigos e da mãe vinham lhe visitar numa rua bombardeada ou mesmo o sonho do inspetor ao receber a visita do sargento ensangüentado que liberta prisioneiros... Em todos os casos, o simbolismo da fantasmagoria está associada à libertação, guiando os vivos para uma condição de liberdade ou mesmo de livre-arbítrio. É uma comparação direta à condição da representatividade auto-imposta de indivíduos presos às exigências de sua própria classe e que só conseguem a liberdade ou a partir dos sonhos reveladores ou por meio da metáfora fornecida pelos outros que, libertos da necessidade de representar, exprimem suas “questões” sem nenhum tipo de objeção.

E não poderia deixar de citar a cena recorrente do grupo andando continuamente por uma estrada que parece não ter fim e que representam (ou podem representar) o espírito errante de indivíduos que parecem nem mesmo conhecerem-se a si próprios, dada a importância exagerada de si enquanto classe hipoteticamente superior à outras. São fantasmas de si mesmos, lutando para se auto-afirmarem numa sociedade em contínua mudança que não permite mais esse tipo de auto-representação egoísta e blasé.

E é sintomático também e que se encaixam perfeitamente nesta simbólica cena na auto-estrada, o fato de que todos os jantares organizados pelo grupo burguês no decorrer do filme ou não acontecem ou são interrompidos constantemente por um ou outro fato fortuito. É como se Buñuel risse de seus personagens durante todo o filme ao demonstrar seu desprezo por aquela classe que costumeiramente preocupa-se muito mais em “arrotar” sua elegância e “charme” sem dar a mínima às questões que acontecem no “lado de fora”, até o momento em que estas “questões” vêm “bater à porta” e “sentar-se à mesa insistentemente”, mesmo que a rigor, nosso seleto grupo de protagonistas busque disfarçar seu incomodo com recato e discrição, tentando inclusive iniciar um “debate” raso que se encerra na primeira polêmica que surja. E que Luis Buñuel faz questão de mostrar em todas as suas nuances e “discreto charme”!

 

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