O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA

03/07/2014 00:19

Cotação: 5/ 5

 

O Homem que Matou o Facínora é para mim um dos melhores filmes de John Ford. Direção segura, texto maduro e interpretações marcantes, esse é um daqueles filmes cuja mensagem deixada ao final é tão importante quanto a narrativa em si. É um filme que se propõe a discutir abertamente o mecanismo de glorificação dos mitos relacionados ao imaginário western, sobretudo aquele relacionado à formação dos mitos individuais construídos num espaço onde imperava a desordem e a justiça com as próprias mãos e onde a própria imprensa ajudava neste processo, sobretudo no que diz respeito ao sensacionalismo de sua prática, naquele contexto.

Iniciando o seu filme mostrando a chegada do senador Rance Sttoddard (James Stewart) e de sua esposa Hallie (Vera Miles) à cidade de Shimbone, o casal logo chama a atenção de antigos amigos e moradores daquele lugar. Em seguida somos informados que a presença do casal ali é para estar no velório de um desconhecido, o rancheiro Tom Doniphon (John Wayne) que, a julgar pela comoção apresentada por Rance e Hallie, parece ter tido uma importância fundamental na vida dos dois, mesmo o tal velório mostrando um desconhecimento e um anonimato que não correspondem com essa comoção e que interessa jornalistas de Shimbone que estão acompanhando Rance. Neste instante, um flashback de Rance nos remete para anos atrás, quando um jovem e recém formado Rance Sttoddard chega à Shimbone e logo de cara é assaltado e agredido pelo “facínora” Liberty Valence (Lee Marvin), uma animosidade que se estabelecerá durante todo o filme.

Além da agressão sofrida por Valence e da determinação de Stoddard em prendê-lo, Rance acaba também por cultivar certa simpatia pela jovem Hallie que, naquela época, era cortejada por Tom Doniphon, criando-se assim, um triângulo amoroso inevitável entre estes personagens que, no entanto, mostra-se secundário no que tange ao tema principal do filme.

Tema esse que gira em torno na vontade e dos esforços de Rance em contribuir para levar à Shimbone certa noção de civilidade aos moradores daquela Vila que, segundo ele, não podem mais mediar seus conflitos por meio do “acerto de contas” algo que vai de encontro à visão de mundo da maioria daquelas pessoas, sobretudo em Tom, pois para esse personagem, para que se tenha algum tipo de lei ou ordem no Oeste é preciso que sujeitos como ele a defendam à bala. Neste sentido, o filme de John Ford coloca-se na vanguarda do gênero ao mostrar-se como um representante crítico sobre a forma como a justiça e a modernidade encontraram forte resistência no Oeste americano, sobretudo por causa dessa arraigada tradição, que ajudou, com a ajuda da imprensa sensacionalista, a estabelecer foras-da-lei como heróis num lugar onde o Estado não encontrava terreno fértil.

Neste sentido, é fascinante perceber a dinâmica estabelecida entre Stewart e Wayne e constatar que a animosidade/ amizade deles é fruto não só por causa da disputa deles sobre o amor de Hallie, mas sobretudo em relação à divergente visão de mundo que os dois compartilham, mesmo os dois concordando radicalmente sobre a ameaça que Liberty Valence representava para Shimbone e seus moradores. Além disso, Stewart e Wayne representam em O Homem Que Matou o Facínora duas formas diferentes de abordagem do western americano, sendo Wayne o legítimo representante da “Old School” ao passo que Stewart mostra-se o representante de uma perspectiva temática que abraçava a necessidade de elevar o gênero a um nível mais crítico acerca de seus próprios cânones, que já não via mais a figura dos valentões do bang-bang como verossímeis numa época onde a necessidade de mostrar um Oeste mais civilizado já se impunha radicalmente. Mesmo assim, O Homem Que Matou o Facínora mesmo fabuloso em sua abordagem madura e incondicional, ainda é bem menos radical do que outras obras do gênero como Meu Ódio Será Sua Herança e Os Imperdoáveis.

Além de toda essa discussão, o filme de John Ford estabelece também a principal fonte de glorificação de seus mitos: a imprensa, que atuava diretamente na construção do imaginário popular voltado para a idealização do herói sem passado enfrentando um inimigo coletivo comum, só que desta vez, graças à genialidade de um dos melhores e mais inquestionáveis representantes do gênero, mostrou-se esse “herói arquetípico” representado não por um fora-da-lei clássico, mas por um advogado com ânsia de justiça jurídica.

Mas se o arquétipo clássico do western é subvertido com o objetivo de mostrar a necessidade de se estabelecer a justiça e a ordem numa cidade que, afinal de contas, pode representar qualquer cidade histórica do Oeste americano, num segundo momento é necessário que este arquétipo volte às suas origens (Rance aceitando enfrentar Valence num duelo) para mostrar mais uma vez que o processo civilizatório americano não se deu de forma pacífica ou mesmo retórica, mas foi imposta e defendida com o auxílio das armas e dos conflitos bélicos, com a diferença é que aqui Ford exemplifica este processo com um exemplo mínimo, porém abrangente.

E não há algo mais irônico do que a solução encontrada por Ford para mostrar o sucesso dos esforços de Rance contra Liberty Valence e sobretudo evidenciar que, no final das contas, o maior esforço de todos ali residiu na escolha corajosa de Tom Doniphon. A ironia é que aqui, aquele que realmente pôs fim ao império de Terror perpetrado por Valence acabou sendo legado ao esquecimento e ao anonimato, ao passo que aquele que assumiu os “louros” da fama por ter matado um bandido e ter conseguido estabelecer a justiça e o progresso para Shimbone, conseguiu mediante a farsa, muito embora para todos os habitantes de Shimbone, desconhecendo a farsa, resta-lhes a exaltação do heroísmo de um homem que, até onde eles sabem, enfrentou e matou aquele que foi para aquela cidadezinha um de seus maiores males. Não é a toa que o último plano seja tão melancólico, pois Rance Sttoddard e sua esposa sempre souberam que suas vitórias pessoais e profissionais foram conseguidas mediante a mentira necessária arranjada por Tom Doniphon.

E quando falamos de lei, ordem e justiça aqui, não podemos deixar de pontuar a ascenção do próprio Estado americano naquela que foi sua região mais difícil de ser “civilizada”. Assim, é com um sorriso de canto de boca que evidenciamos a sugestão de John Ford de que o Estado se impôs ao Velho Oeste com a mesma violência que os senhores do sul retoricamente insistiam em gabar-se. O irônico por parte de John Ford foi mostrar que em Shimbone, uma mentira foi a base para o estabelecimento do progresso e da modernidade urbana que, no final das contas, acaba sendo uma incontestável crítica não só ao western, mas também à própria sociedade americana, em certa medida

 

No final das contas, o que fica é o ensinamento daquela que se tornou, sem dúvida, a melhor frase-tese da história do cinema: “Quando a lenda se torna mais importante que o fato, publique-se a lenda!”.

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