O SEGREDO DOS SEUS OLHOS

24/05/2014 19:41

 

 Nota do Site: 5/ 5


     Juan José Campanella é um diretor acostumado em conceber histórias simples que conseguem atingir emocionalmente o espectador com enredos que misturam humor e drama de forma orgânica, extraídas a partir da simples interação de seus personagens, apresentando um mosaico de sentimentos que tornam a obra do diretor indiscutivelmente tridimensional, sem apelar para o riso ou o choro fácil, pois estes quando surgem, são espontâneos e totalmente conectados à história em curso. Foi dessa forma que o diretor alcançou fama internacional com longas como O Mesmo Amor, A Mesma Chuva (1999), O Filho da Noiva (2001) e Clube da Lua (2005), todos protagonizados pelo seu mais assíduo colaborador, o extraordinário ator Ricardo Darín.

     Dessa forma, chegamos então ao mais recente filme do diretor, o fantástico O Segredo dos Seus Olhos (talvez o melhor filme de Campanella, depois de um longo período dirigindo episódios em House e Law & Order: SVU). Roteirizado pelo próprio diretor ao lado do escritor Eduardo Sacheri a partir do livro La Pregunta de Sus Ojos, do próprio Sacheri, o filme conta a história de Benjamin Espósito (Ricardo Darín), um oficial de justiça aposentado que, para ‘matar’ o tempo, decide escrever um livro sobre um caso de estupro seguido de assassinato do qual participou há 25 anos atrás e cujo resolução, por uma série de circunstâncias, terminou longe do ideal. Agora, já velho e preso a essas e outras lembranças de seu passado, Espósito reata relações com antigos conhecidos de seu passado, uma delas sendo a agora promotora de justiça Irene Ménandez Hastings (Soledad Villamil), antiga chefe de Espósito pela qual ele era apaixonado. Fazem parte da história também o ajudante de Espósito, o bêbado Pablo Sandoval e também o jovem bancário Morález, cujo sofrimento pela perda da esposa reflete a própria obsessão e inanição de Espósito diante de Irene.

     O primeiro aspecto que se destaca neste filme de Campanella diz respeito à forma segura e gradativa com que o diretor desenvolve seus personagens. Logo na seqüência inicial, vemos Irene e Espósito numa cena passada em uma estação de trem, onde verificamos os protagonistas se olhando e sendo fotografados em close, enquanto que o que está ao redor deles, em segundo plano, é visto de forma opaca e/ou embaçada, o que salienta o título do filme ao mesmo tempo em que estabelece a temática central da história: as lembranças de Espósito, que nos guiarão nesta jornada e, em vários momentos, se mostrarão inconstantes ou incertas, pois sendo fruto de sua memória, as lembranças não seguem necessariamente uma racionalidade temporal adequada. Aliás, esta cena inicial, sendo um flashback do protagonista, ganhará uma releitura mais adiante, próxima ao fim do segundo ato, a partir do ponto de vista de outra pessoa.

     Desta forma, as ações do protagonista no presente e no passado são inseridas sempre de maneira fluida e oferecem ao espectador a oportunidade de presenciar o desenrolar dos acontecimentos com calma, algo fundamental para nos importarmos com os personagens e comemorarmos cada pequena reviravolta na narrativa, que funcionam justamente pela paciência com que as informações são fornecidas em tela. Ao final, tudo aquilo que foi visto foi também, de certa forma, experimentado por cada espectador, que passou a rir ou chorar com cada situação ou drama vivido por este ou aquele personagem. Além do mais, a forma discreta com que Campanella compõe seus quadros e conduz seus atores chama a atenção pela disciplina auto-imposta, fruto do amadurecimento do cineasta em cada filme que dirigiu.

     Essa metodologia se reflete também na direção de arte, cuja recriação de época e a concepção dos cenários ajudam Campanella ao conduzir nosso olhar para o que é relevante para a trama, bem como a direção de fotografia, ao recriar um clima noir nas cenas que se referem à investigação do assassinato e quadros que remetem às lembrança do protagonista, com cores mais quentes. Fechando esta parte técnica, não podemos deixar de salientar a trilha sonora econômica mais eficiente deste filme, que contribui também para a evocação do clima necessário para o andamento da narrativa.

     Mas O Segredo dos Seus Olhos não funcionaria caso não contasse com a contribuição expressiva de seus atores: Soledad Villamil, como Irene, mostra firmeza como promotora ao mesmo tempo em que se apresenta sempre afável em sua relação com Espósito, guardando intimamente um interesse amoroso pelo colega que não se externaliza pelo simples fato do próprio Espósito jamais assumir seus sentimentos em relação à ela, algo comprovado sempre quando os protagonistas trocam olhares ou quando, numa determinada cena, ao ser chamada por ele pra conversar, quando ela se enche de esperança pelo que esse momento pode significar e se frustra em seguida ao saber do real teor da conversa, sem que para isso ela sequer fale do ocorrido, transmitindo a informação para o público apenas pelos seus expressivos olhos, o que torna a beleza desta intérprete ainda mais absoluta, diga-se de passagem. Em seguida temos a participação de Guillermo Francella como o amigo bêbado e fanfarrão do protagonista, que nos faz rir sem necessariamente apresentar um tipo exageradamente extrovertido. E também temos Pablo Rago como o trágico viúvo que, mesmo encarando a morte da esposa sem qualquer sinal maior de catarse, acaba condicionando sua vida à uma busca por justiça que se mostra incerta desde o começo.

     E por último temos Ricardo Darín naquela que certamente é a melhor interpretação dele em filmes comandados por Juan José Campanella. Compondo um personagem preso ao seu próprio passado por não saber lidar com suas próprias lembranças, Benjamin Espósito é aquele tipo de indivíduo cuja vida sempre foi pautada pela dedicação à profissão e que, ao se aposentar, passa instintivamente a relembrar e reavaliar suas ações passadas, como forma de ainda se sentir útil. Dessa forma, a decisão por escrever um livro sobre um caso que havia trabalhado e se envolvido tão intensamente, ao ponto desse envolvimento ter implicado em um exílio involuntário, é algo mais do que natural e traz, intimamente, uma necessidade catártica dele em tentar seguir adiante.

     Contudo, durante o filme, vemos o quão difícil é para Espósito esse ‘trabalho’ auto-imposto. Demonstrando insegurança em suas próprias lembranças na medida em que elas surgem, a tarefa de escrever sobre a história parece ser uma síntese cruel do próprio comportamento de Espósito em relação à sua própria vida, sobretudo no que diz respeito à paixão alimentada por Irene. Sua dificuldade em pôr termo ao livro pretendido pode ser considerado como fruto de sua própria inanição em relação à dificuldade com que Espósito tem em expor seus sentimentos (como comprova o simbolismo representado pela máquina de escrever do escritor, que traz um jogo de palavras curioso e revelador!). E quando, já velho, Espósito pensa no caso, não há como negar que o protagonista associa, mesmo que inconscientemente, o amor interrompido do bancário com a relação que o oficial de justiça nunca pôde ter com Irene. E saber como se encontra e qual o caminho tomado por Morález nos anos que se seguiram é algo que verdadeiramente importa para Espósito.

     Trazendo uma série de seqüências inesquecíveis, emocional e tecnicamente, O Segredo dos Seus Olhos é aquele tipo de filme magistralmente equilibrado que, sem a necessidade de mostrar quaisquer cenas excessivamente cômicas ou melodramáticas, dependem muito, como já falei antes, da simples interação dos personagens, como na cena entre Espósito e Irene, num reencontro após a aposentadoria, quando o primeiro apresenta a proposta do livro e ela, curiosa, pergunta-lhe qual foi a primeira imagem que ele pensou para compor o livro e ele imediatamente lembra do dia em que a conheceu. Ou na cena quase na metade do filme quando, numa conversa com Morález numa estação de trem, o bancário informa ao oficial sobre o que se lembrava do último dia em que esteve com a esposa e os diálogos remetem aos primeiros parágrafos do livro do velho Espósito. Ou então, a seqüência em que Espósito observa um detalhe numa foto e percebe este mesmo detalhe numa foto antiga dele e de Irene.

     Tecnicamente, tenho que destacar o fantástico plano-seqüência que, iniciada num plano aéreo da cidade de Avellaneda, vai gradativamente se aproximando do estádio do Racing até identificar Espósito e Sandoval no meio da torcida, tentando identificar um suspeito e, sob gritos e pulos de uma torcida enlouquecida, iniciam uma perseguição nas dependências do estádio e terminando numa imobilização dentro do campo, o que me fez pensar na incrível logística empregada para essa cena que, certamente, envolveu um trabalho tão denso quanto os planos-seqüências vistos em outras obras-primas como Filhos da Esperança e Desejo e Reparação.

     Porém, é mesmo o ato final do filme que faz de O Segredo dos Seus Olhos uma indiscutível obra-prima. Decidido a procurar Morález a fim de obter informações que pudessem levá-lo a concluir o livro, ao mesmo tempo em que é insistentemente persuadido por Irene para que ele deixe essas lembranças de lado, Espósito encara, com frustração, sua conversa com o velho viúvo, pois o mesmo afirma literalmente que ‘seguiu adiante’ e pede, em contrapartida, que o oficial faça o mesmo com sua obsessão. Mais é na saída dali que Espósito, ao tomar outra direção, depara-se com uma cena incrivelmente bem-sucedida, sendo catártica ao espectador mas sem recorrer a excessos, ao mesmo tempo que se torna trágica para aquele que a exerce. Confesso que a imagem vista ali me deixou uma imensa impressão, justamente pelas implicações que aquela cena tem na vida dos envolvidos, ao mesmo tempo em que a decisão tomada em seguida pelo protagonista fecha o filme com chave-de-ouro, num final aberto e cheio de possibilidades que aumentam ainda mais a eficiência do longa-metragem.

     E não é à toa que O Segredo dos Seus Olhos foi laureado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. A experiência de acompanhar a vida (e, quase obra!) de Benjamin Espósito é uma dessas experiências reveladoras que, passadas em retrospecto, dizem muito sobre a nossa própria vida do que podíamos supor a princípio. Fale a verdade: o que você sentiu quando viu determinado personagem aparecer subitamente no final do filme? Eu particularmente senti pena, mesmo sabendo das atrocidades que ele tinha cometido e, por causa disso, talvez isso esteja ligado à nossa satisfação ao se corrigir uma injustiça e se senti pena pelo sujeito é porque a intenção do diretor foi, sem dúvida, bem-sucedida, mesmo sabendo que aquela cena não se reduz somente à esse aspecto. É uma obra aberta, portanto.

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