O SOM AO REDOR

25/05/2014 18:20

 

Nota do Site: 5/ 5


     Existe uma narrativa pungente por trás das simplórias micro-histórias que compõem este fabuloso O Som ao Redor, que se revela através da eficiente diegese sonora que dá título ao filme. Rigorosamente falando, não existe necessariamente uma grande trama que costure todas as narrativas do filme, mas verdadeiros flagrantes do cotidiano dos personagens que têm sua importância intensificada através da captura eficiente de sons ambientes, cujo design sonoro eficaz nos ajudará a mergulhar naquele ambiente e compreender melhor aquele universo.

     Universo esse que diz respeito à indivíduos de um condomínio de classe média de Recife que, enquanto lidam cada um a seu modo com pequenas situações do cotidianos, estão cada vez mais preocupados com a própria segurança, sobretudo depois que o carro de uma jovem amanhece arrombado. Aliás, esse é o pontapé da trama: depois de passar a noite com uma desconhecida, o personagem João, ao levar sua jovem amante até o carro dela, encontra-o arrombado e roubado. Após despedirem-se, João passa a investigar o fato entre os vizinhos até começar a desconfiar de seu primo, Dinho. Cenas depois, seguranças particulares estão circulando pela mesma rua oferecendo seus serviços aos moradores que, cada vez mais ressabiados, aceitam sem questionamentos.

     Neste sentido, o sentimento de insegurança é o tema comum que interliga cada micro-narrativa deste projeto. Além disso, por se tratar de um condomínio de classe média, o cineasta não exita em observar quase que de maneira documental a íntima relação de classes existentes entre aqueles indivíduos e seus empregados, uma relação conflituosa na maior parte do tempo e que é responsável pelos melhores momentos do filme.

     Assim, quando somos “levados” para dentro daquele espaço, através de uma fantástica steadicam que simplesmente segue uma garota de patins, entrando no prédio, passando pelo estacionamento e indo parar numa quadra de futebol no playground do edifício, somos simbolicamente convidados a conhecer um pouco mais da vida daquelas pessoas. Notem, por exemplo, que o som das rodas dos patins em contato com o asfalto da rua, bem nítidos em primeiro plano, são logo misturados ao falatório dos indivíduos que se encontram da quadra, gerando outro tipo de ruído que faz todo o sentido se aceitarmos aquela estratégia sonora como uma espécie de introdução àquele espaço barulhento e cheio de vida. Aliás, este barulho justificado logo se contrapõe eficientemente aos ruídos abafados que cercam dois jovens que se beijam, nos sugerindo, enfim, que já nos encontramos num outro ponto do condomínio, mesmo sabendo que os ruídos em segundo plano são das pessoas no playground.

     Esta proposta diegética, como vemos, serve para associarmos cada ruído ou barulho mais intenso à um determinado ponto daquele espaço onde já passamos e porventura víramos algo. Como por exemplo em todas as cenas em que a personagem Ana circula pelos cômodos de sua casa, sempre ouvimos ao fundo sons “vazados” vindos da rua ou da vizinhança. É igualmente interessante que, depois de nos mostrar Bia se estimulando sexualmente em sua máquina de lavar (!!!), Kléber Mendonça Filho usará o mesmo som desta máquina como pano de fundo sonoro em outros momentos onde outros personagens estão protagonizando suas narrativas próximos ao apartamento de Bia. Assim, mesmo que dentro daquele espaço diegético os personagens pouco saibam uns dos outros, nós espectadores sabemos muito bem o que cada um está fazendo em sua privacidade.

     E como é bom ouvir aqueles sons. Das solas de sapato em contato com a sujeira do asfalto, passando pelo barulho irritante de uma música no volume máximo, cada barulho tem uma justificativa narrativa que não precisa de explicação. Aliado a isso, temos um roteiro cujos diálogos parecem ter sido ou improvisados ou colhidos dos próprios transeuntes. Aliás, os diálogos do filme são tão eficientes que quando ouvi o personagem Clodoaldo (Irandhir Santos) dizer a um morador “a gente tamo passando”, confesso que senti uma simpatia imediata pelo personagem, provavelmente por causa de seu coloquialismo familiar e espontâneo.

     Este personagem, aliás, é um dos mais complexos do filme. Interpretado por Irandhir Santos, o sujeito parece ter resposta para tudo que o perguntam, só se mostrando amedrontado ocasionalmente, porém de uma forma muito sutil. Aliás, é fabuloso a forma calculada com que Clodoaldo conversa com as pessoas, sempre deixando pequeníssimas pausas em suas falas só para que percebamos seus esforços em dizer algo que o interlocutor queira ouvir.

     Mas como disse anteriormente, o principal foco de Mendonça Filho é mesmo o comportamento daquela classe média encastelada, amedrontada e entediada. Vejamos por exemplo, a significativa cena onde condôminos reúnem-se para decidir se demitem ou não o porteiro do prédio. O que está em jogo aqui não é a possibilidade de se manter o emprego do sujeito, muito menos discutir se o idoso senhor tem condições de procurar um novo trabalho, mas sim se o demitem por justa causa ou não, um debate tão mesquinho e egoísta que mesmo quando vemos alguém disposto a defendê-lo, esse alguém é criticado pelos outros condôminos por sua complacência, que julgam esta atitude “injusta” com o restante dos moradores. Aliás, igualmente ridículo é a moradora cuja reclamação contra o porteiro é a de que “sua revista Veja está sendo entregue fora do plástico”, ou do sujeito que deixa escapar certa “boçalidade” pelo fato do filho ter gravado um vídeo com imagens do porteiro dormindo em serviço, “provando” a ineficiência profissional do sujeito.

     Essa cena é tão sintomática que nos escancara de forma clara a cegueira social de uma classe que só se mobiliza quando vem debater assuntos que atentem contra seus próprios interesses. Assim, o porteiro que dorme em serviço é tido como ineficiente, mas em nenhum momento se pensa na possibilidade dele fazer aquilo como resposta aos atos de discriminação social que provavelmente sofre em seu ambiente de trabalho. Assim, numa análise mais profunda deste tema, percebemos que o cineasta enxerga nos pequenos delitos cometidos pelos empregados e subalternos uma estratégia de vingança contra seus patrões ou contra aqueles que representam essa classe média cega. Assim, a mulher que nega ser ajudada por um guardador de carros tem seu carro arranhado em seguida; a empregada doméstica que, vendo a possibilidade de transar com o namorado na casa de um condômino que se encontra em viagem, aceita-o por provavelmente achar aquilo “libertário”; e a doméstica que, depois de queimar um objeto da patroa e de ouvir reclamações, tenta levantar a voz pedindo que a patroa “não fale daquele jeito”.

     Além disso, o sentimento de insegurança daquelas pessoas e a necessidade cada vez mais paranoica de se sentirem seguros através de câmeras de vigilância ou de vigias noturnos é representada fielmente no sonho da filha de Bia que, em pesadelo, vê inúmeros indivíduos pulando os muros do prédio e roubando os móveis de sua casa. Uma cena que podemos perfeitamente associar com o fato de que, num ambiente daqueles, a garota certamente ouviu dizer que aqueles “de fora” (leia-se: a classe mais empobrecida!) são um perigo eminente. Mais um erro de julgamento que Mendonça Filho sutilmente insere em sua trama.

     E ainda temos a pequeníssima mas eficiente subtrama envolvendo Bia e sua vizinha que se esbofeteiam pelo ridículo fato de uma ter comprado uma TV de polegada maior que a outra. Ou o pequeno luxo da personagem em contratar uma professora de chinês para os filhos. Complexa em seu tédio aparente, Bia é o tipo de personagem que vê em pequeníssimos delitos a saída para seu marasmo. Assim, é com satisfação que a vemos deitada furtivamente no sofá enquanto seus filhos lhe massageiam. E ainda tem a relação dela com o cachorro… sé vendo para ver do que se trata!

     Por último, a subtrama envolvendo o sr. Francisco e sua declarada influência entre os moradores do condomínio não deixa de ser um pequeno exemplo de patriarcalismo agrário que, mesmo decadente, não deixa de exercer relativa importância naquele contexto urbano. Mas se tomarmos ao pé da letra o último plano do sujeito, esta importância não deixa de ser um embuste.

     E falando em último plano, é interessante como o barulho de várias bombinhas estourando mascaram outros ruídos, a de estampidos de revólver que certamente ocorreram em outro ponto daquele espaço. E utilizando-se deste pequeno truque sonoro para finalizar sua trama, Kléber Mendonça Filho não só nos entrega um trabalho extremamente eficiente como nos deixa também atentos e ansiosos para sua próxima empreitada. E que venham novos trabalhos, tão poéticos quanto este, desse fascinante realizador!

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