OS IMPERDOÁVEIS

08/06/2014 21:05

        Nota do Site: 5/5

        Os Imperdoáveis é um filme especial. Enquanto busca homenagear o universo western americano, no mesmo instante o revisita de maneira implacável, questionando seus cânones mais fundamentais, sobretudo no que diz respeito ao uso recorrente da violência e dos fora-da-lei. Sua visão é tão amarga sobre aquele ambiente que a sensação que temos é a de que não existe possibilidade de um final feliz para quaisquer daqueles personagens, dado o grau de pessimismo com que o roteirista David Webb Peoples e o diretor Clint Eastwood vão pontuando sua narrativa.

Iniciando seu filme num plano belíssimo onde vemos um espetacular pôr-do-sol mergulhado num laranja intenso enquanto vemos um túmulo em contraluz, Eastwood e seu diretor de fotografia Jack N. Green rapidamente contrapõem essa abertura bucólica à outra em seguida, absolutamente mais brutal e mergulhado em penumbra, onde vemos o ataque à prostituta Dellilah, na cidadezinha de Big Whisley, um evento que determinará o rumo dos acontecimentos dali em diante.

Enquanto isso, William Munny (Eastwood) luta para criar seus filhos enquanto tenta gerenciar uma pequena fazenda de porcos até o instante em que o passado bate à sua porta na figura do jovem e inexperiente Schofield Kid (Jaimz Woolvett) que, ciente do passado de Munny como pistoleiro, tenta convencê-lo a aceitar a oferta da prostituta Alice para irem à caça dos rancheiros que retalharam o rosto de Dellilah. Ocorre que deste passado sombrio Munny quer distancia, pois há anos ele não mata ninguém, muito por causa de seu relacionamento com a falecida esposa Claudia. Entretanto, depois de relutar, Munny opta por aceitar a oferta devido a sua precária situação financeira e chama para esta empreitada o antigo parceiro, Ned Logan (Morgan Freeman), que se junta a ele e Kid. Entretanto, a recompensa ofertada pelas prostitutas de Big Whiskey gerou uma verdadeira “temporada de caça” na cidade e, neste sentido, o xerife local, o violento Little Bill Daggett (Gene Hackman) terá uma particular forma de afastar os pistoleiros dali, o que colocará Munny, Logan e Kid em sua mira”.

Assim, o primeiro ponto positivo do filme é discutir abertamente o uso da violência como forma particular de justiça naquele universo. Desta forma, se num primeiro momento a recompensa ofertada por Alice e suas amigas poderia facilmente se tornar a justificativa perfeita para os atos futuros de Munny, o roteiro de Peoples habilmente subverte esta perspectiva ao estabelecer que a necessidade de vingança das prostitutas possa trazer conseqüências terríveis à cidade a partir da chegada de pistoleiros vindos de todos os cantos, além de mostrar que, a rigor, o ataque à Dellilah tenha se dado muito mais por um rompante momentâneo do que por uma questão de caráter. Além do mais, a questão da caçada aos tais rancheiros mostra-se como secundária no quadro geral do filme, haja visto que o que está em jogo aqui é mesmo a tênue relação entre honra/ necessidade presente na psicologia do personagem de Clint.

Desta forma, compondo um sujeito emocionalmente fragilizado e fisicamente “enferrujado”, Clint apresenta-se como o contraponto ideal para a “figura do macho” tão bem construído por ele no cinema, sobretudo a partir de suas primeiras incursões no faroeste por intermédio de Sérgio Leone, optando aqui por uma sutil desconstrução absolutamente orgânica e de inegável complexidade, só para retornar ao arquétipo clássico nos instantes finais, numa composição que àquele momento, nos convence justamente por causa de sua plausibilidade, pois, ao passarmos cerca de duas horas do filme acompanhando um sujeito hesitante e destreinado, lutando para não se entregar à faceta mais sombria da seu caráter (mesmo exalando uma ameaça que é imposta sobretudo por causa da presença imponente da sua persona), sua explosão de violência nos assusta por finalmente compreendermos e constatarmos o que de fato o personagem tinha tanto medo e tentava a todo custo evitar.

E se Clint mostra-se como o vilão em busca de uma redenção impossível, Gene Hackman encara de forma perfeita sua nêmesis. Encarnando um sujeito claramente preocupado em defender seu território, Little Bill Daggett não ousa em usar os mesmos recursos que provavelmente um pistoleiro treinado usaria. Assim, quando o vemos exercer este recurso de forma efetiva pela primeira vez com o pistoleiro English Bob (Richard Harris, numa participação curta, mas eficaz), sabemos exatamente que para aquele sujeito não há limites no exercício de sua função. Neste sentido, enquanto Munny evita usar da violência temendo a falta de controle, Little Bill a usa de forma declarada, num exemplo claro e incrivelmente moderno de que para homens da lei como Daggett o exercício da violência como forma de punição e controle é plenamente justificável num contexto de ameaça e possível rebeldia.

Mas não pára por aí. Ao mostrar personagens complexos e repletos de nuances, Eastwood introduz de forma sutil a importante discussão sobre a ética e a honra típicas do Velho Oeste. Esta discussão está sobretudo, incluída na própria ação que impulsiona o filme mas que perde o sentido quando o confronto finalmente chega pois a sensação que temos ao vermos um determinado personagem agonizar é de que o assassinato, por mais que se tenha razão em praticá-lo, nunca será justificável, tanto moral quanto legalmente (“quando se mata alguém, tirasse dele o direito dele vir a se tornar alguém”, diz Munny).

Além disso, todos os personagens principais ali – Munny, Little Bill, Bob e Ned – compartilham do mesmo passado duvidoso, criando uma tênue relação entre a lei e o banditismo que obras-primas do gênero como O Homem Que Matou o Facínora já na década de 1960 trataram de questionar, sobretudo ao discutir a importante questão da glorificação mítica e midiática de foras-da-lei do velho Oeste que aqui estão perfeitamente representadas pelo interesseiro W. W. Beauchamp (Saul Rubinek), que salta entre Bob, Little Bill e Munny assim que a história do outro convence mais ou parece ser mais “interessante” que do anterior, mesmo Beauchamp dividindo-se entre a admiração e o temos pelo(s) seu(s) biografado(s).

Tenso, dramático e eficazmente empolgante como qualquer filme do gênero, Os Imperdoáveis pode ser considerado a melhor releitura do faroeste desde que Sam Pechimpak ousou dirigir o incontestável Meu Ódio Será Sua Herança, um filme que, assim como essa homenagem moderna de Eastwood, também ousou lançar um olhar ácido sobre este que é por definição o “mais americano” de todos os gêneros cinematográficos.

Entretanto, em termos de referência, esta obra-prima de Eastwood mostra-se uma miscelânea eficaz dos estilos dos melhores diretores americanos do gênero, tais como John Ford, Howard Hawks, George Stevens e Sérgio Leone (o duelo final é uma clara referência a Os Brutos Também Amam e Três Homens em Conflito), trazendo todos os recursos consagrados pelo gênero como os anti-heróis de passado duvidoso, os duelos à noite ou ao pôr-do-sol, etc., como a diferença é que aqui, enquanto homenageava seus mestres, Clint Eastwood ia amadurecendo um estilo particular de dirigir que viria a notabilizá-lo não só como um dos grandes atores de sua geração, mas também como um dos melhores cineastas de seu país.  

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