SOBRE MENINOS E LOBOS

25/05/2014 19:28

 

Nota do Site: 5/ 5


     Clint Eastwood é um patrimônio americano. Dono de uma trajetória cinematográfica respeitadíssima e de uma persona particularmente carismática, o ator esbanja também talento atrás das câmeras, e um dos seus melhores e mais difíceis trabalhos está nesse Sobre Meninos e Lobos, baseado no livro Mystic River, de Dennis Lehane e belissimamente adaptado pelo competente Brian Helgeland.

     Contando a história dos ex-amigos de infância Jimmy Markun (Sean Penn), Sean Devine (Kevin Bacon) e Dave Boyle (Tim Robbins), o filme se inicia quando, ainda crianças, os amigos tem sua relação mudada quando Dave é levado e violentado, fazendo os três seguirem caminhos diferentes. Anos mais tarde, é a vez de Jimmy lidar com uma trágica situação, quando sua filha adolescente é encontrada morta. Assumindo a investigação, o agora detetive Sean Devine correrá contra o tempo em busca de solução para o crime, antes que Jimmy resolva agir por conta própria, o que poderá levá-lo diretamente a Dave que, por uma série de indícios, parece estar ligado diretamente a este assassinato.

     Lidando com uma narrativa psicologicamente pesada e cheia de nuances, Clint e Helgeland se saem absolutamente bem ao conseguirem desenvolver temas tão delicados como luto, vingança e inocência perdida. Aliás, apresentando-se disfarçadamente como thriller investigativo, o filme logo nos faz perceber que nesta história importa muito mais acompanharmos aqueles indivíduos em situações limites de tragédia e busca por superação, do que sabermos quem de fato matou Katie Markum. É, portanto, um complexo e soberbo estudo de personagens num contexto onde já sabemos de antemão que dificilmente terão um final feliz.

     Adotando uma fotografia de tons predominantemente frios (sobretudo tons mais azulados e cinzentos), o diretor de fotografia Tom Stern se encarrega de estabelecer dessa forma para o espectador o clima pesado que paira sobre aqueles sujeitos, evocando dessa feita um apropriado clima melancólico à narrativa. Além disso, os planos aéreos sobre o tal Mystic River conferem um ar de mistério ao lugar, sugerindo que este bairro tem muito a esconder.

     É digno de nota também o desenho de produção coordenado por Henry Bumstead, cuja escolha das locações é perfeita para o desenvolvimento da narrativa num cenário majoritariamente suburbano mas com um forte sentimento de comunidade, algo sugerido pelo próprio formato das casas, muitos próximas umas das outras bem como a perfeita exploração dos espaços feitas pelos atores e equipe técnica do filme (além da câmera de Stern, claro!), e complementado obviamente pelo ótimo trabalho de casting do filme, que certamente contribuiu para a dinâmica entre os atores, aumentando a forte sensação de cumplicidade e solidariedade que o filme passa.

     E essa sensação é fundamental para a percepção da real dimensão que aquele crime tão brutal tem na vida daquelas pessoas, algo ilustrado em duas importantes cenas, a primeira, nos traz a impactante cena onde Jimmy grita, desesperado, ao descobrir sua filha morta, e a outra cena, mais sutil mas não menos importante, nos traz o tocante momento onde Jimmy, numa conversa com Anabelle, Sean e Whitey, deseja sinceramente ter tido o destino de Dave na infância, assim, sua filha nunca teria nascido e conseqüentemente, nunca teria morrido daquele jeito tão estúpido.

     Sean Penn, neste sentido, está soberbo em todos os sentidos. Surgindo como um dedicado pai de família cuja única preocupação é o possível pretendente à namorado da filha (numa cena rápida, uma quase imperceptível movimentação de um banco pra outro já estabelece de imediato o desconforto de Jimmy com o rapaz). Aos poucos, a revolta, misturados à culpa, levam Jimmy a abraçar cada vez mais um lado sombrio reprimido há tempos justamente pelo amor à filha, desenvolvendo um triste arco dramático que se encerra brilhantemente numa simbólica troca de olhares entre ele e Sean.

     Sean Devine é outro que, embora enfrente um dilema irrisório, se comparado à Jimmy e Dave (a mulher de Sean não fala com ele há meses!), tem também sua parcela de complexidade, sobretudo na relação com os amigos, manifestado por exemplo, na preocupação em não tornar Dave suspeito do assassinato de Katie, mesmo com vários indícios apontando contra si e com Whitey pressionando neste sentido. E também o momento em que finalmente revela à Jimmy as reais circunstâncias da morte de Katie, demonstrando inação justamente por causa de algo particularmente trágico dito por Jimmy, e que em circunstâncias normais, detetive nenhum iria ignorar.

     Enquanto isso Dave Boyle, sem dúvida o mais trágico dentre todos os personagens, é interpretado com uma intensidade dramática invejável por um Tim Robbins tão bom quanto em O Jogador e Um Sonho de Liberdade, onde ele encarnava Griffin Mill e Andy Dufresne, respectivamente. Acertando em cheio em sua composição, Tim Robbins encarna Dave como um sujeito apático, monossilábico e andando sempre curvado, como se o seu passado de jovem violentado pesasse contra seus ombros, levando-o à uma constante postura de alto-defesa contra todos ao redor. Tal postura contribui, neste sentido, à uma certa confusão mental por parte do sujeito, colaborando diretamente para a desconfiança de todos sobre sua “culpabilidade”, reforçado sobretudo na cena onde Dave conversa com a esposa sobre “vampiros”, onde ele tenta desabafar sobre seu trauma e acaba sendo mal-interpretado por ela, graças à sua inabilidade em engendrar lógica ao seu discurso. Neste sentido, chega a ser uma crueldade por parte de Eastwood e Stern trazer Dave no terceiro ato enquadrado no banco de trás de um carro, num plano similar àquele visto logo na primeira cena.

     Quanto ao restante do elenco, só elogios. Se Lawrence Fishburne está ótimo como o detetive Whitey Powers, Marcia Gay Harden, embora claramente caricata em sua última cena, conseguiu mesmo assim estabelecer uma ótima diferença de personalidade com a sempre competente Laura Linney, cuja personagem Anabelle demonstra uma complexidade muito maior na medida em que a narrativa se encaminha para o fim, influenciando diretamente no futuro de seu marido Jimmy. E além disso tudo, ainda tem a ponta não-creditada de Eli Wallach, cuja importância reduz-se apenas à nossa afetividade e curiosidade cinéfila, vendo o “Feio” participando de um filme do “Bom”. E se você não daz ideia do que estou falando, bom, então você tem problemas sérios!

     Adaptando uma história que é um prato cheio pra qualquer ator de altíssimo nível, Clint Eastwood concebeu também um clássico no melhor sentido da palavra. Uma história sem a menor possibilidade de final feliz, repleta de simbolismos (o nome incompleto na calçada, por exemplo) mas que mostram ao espectador uma série de situações que o fazem pensar e refletir a respeito. E se você fosse cada um dos personagens, o que faria no lugar? São perguntas que Clint e Helgeland habilmente nos deixaram pra responder.

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